segunda-feira, agosto 21, 2006

A Identidade Sadina: Ensaio através de uma perspectiva histórica-arqueológica.

José Luís Neto (Arqueólogo)
Setúbal * 2005

1. – Introdução

Com este pequeno ensaio, em verdade, damos o segundo passo num projecto pessoal que visa a criação de um conjunto de textos acessíveis e de consumo rápido (“fast-food, fast-book”), de modo a oferecer pontos de apoio, o que, no nosso julgamento da realidade, se tornou “não só interessante, mas mesmo premente, numa fase de mudança nos próprios alicerces em que Setúbal se tem fincado”, conforme dissemos, no primeiro texto deste projecto.
Na sequência da elaboração da monografia da intervenção do Convento de Nossa Senhora do Carmo, escavado no final do ano de 2001, verificámos que a bibliografia disponível sobre Setúbal era vasta, mas encontrava-se muito dispersa, em locais pouco habituais para quem não trabalha nos meandros tortuosos da investigação histórica. Faltavam, igualmente, textos “descomplicados”, que não fossem, forçosa e simultaneamente, simplistas. Esta situação, pouco compatível com os ritmos vivenciais dos dias de hoje, tinha de ter uma resposta. Por estas razões, e porque estamos convictos que a investigação só atinge pleno sentido quando tem utilidade social, trabalhámos n’ A Terra de Sal – uma visão de arqueologia social de Setúbal Moderna, procurando “tentar ligar, dar algum sentido a esses marcos de outra Era com que nos defrontamos diariamente, tentando recuperar alguma da sua dimensão de conjunto e humana”. O texto, concluído em 2004, já passado pelo crivo da academia, conforme convém a quem tem gosto por estas “ideias modernas”, está entregue para publicação numa universidade de Lisboa.
Porém, fiquei com uma certa insatisfação com a sorte desse texto. Se o acolhimento e a promoção à edição, em Lisboa, é algo de natural, revela-se difícil que tal aconteça em Setúbal. As poucas editoras existentes têm vocações distintas e passam por dificuldades financeiras. É esta a percepção que tenho, mas, confesso, também não procurei, seriamente, em Setúbal, quem o editasse.
Quanto a este segundo passo, de um projecto que pretende encontrar os temas sobre os quais se desenvolve, nas inquietações pressentidas no real actual, pouco mais temos a dizer. Não era, de facto, o tema que pensaria abordar logo no segundo texto, mas, nem tudo o que é equilibrado é naturalmente correcto.
Escrever um ensaio assente num conceito tão volátil quanto a identidade, não é muito sensato, mas tal não significa que não possa e, principalmente, não deva ser tentado. Sugeriu-se-nos como um imperativo na sequência da vivência de certas experiências e da ponderação de diversos factores, de diferentes naturezas. Na realidade, o conceito identidade tem sofrido um uso demasiado profícuo, desde, pelo menos, que cheguei a esta cidade, já lá vão alguns anos, para que me passasse despercebido. Em cada folha de jornal, discurso na rádio, nos cruzamentos das esquinas e no centros das praças, lá estava ele, sempre na liça, quer no campo dos discursos político-partidários, bem como nos variados discursos desse vasto agros que é a cultura, ou mais prosaicamente, em numerosas conversas de café, pelos mais variados intérpretes sociais. Em verdade, todos têm uma ideia sobre a identidade sadina, ou setubalense, ou ainda cetobricense, ou acalense, ou barbárica, ou cempsicense, ou, ou, dependendo das preferências de cada um.
Procurarei explicitar todos esses nomes agora enunciados, mais adiante, mas, por ora, modernamente, prefiro focar-me nas múltiplas razões que me levaram a esta ponderação, que nada trás de novo, diga-se, mas serve para recordar o que as mais das vezes é esquecido e que, no meu modesto juízo, não o deveria ser, porquanto, como disse Ana de Castro Osório, numa apresentação ao município sadino, há mais de cem anos, “…a ignorância não passa de uma forma de opressão”. Palavras certeiras de uma mulher extraordinária, em circunstâncias especiais. Desvelaremos essas circunstâncias, mas não agora, deixemos para mais tarde, quando for apropriado…
Outro aspecto que me levantou alguma inquietação foi o facto de ser corriqueiro afirmar que Setúbal é desprovida de identidade. Estranheza e inquietação, pois nestas coisas da identidade sou um pouco preciosista, podendo aceitar que haverá pouco reconhecimento ou conhecimento sobre a identidade sadina, mas não poderei aceitar que não há identidade. Ora, ou bem que a identidade existe por si, ou bem que é apenas uma construção totalmente artificial. Caso a identidade exista, por si, podemos entender a melancolia espiritual das pessoas que já não se reconhecem neste espaço, porquanto o acham e sentem desvirtuado. Todavia, se a identidade é apenas uma construção artificial, tal melancolia não tem razão de ser; todavia ela existe, o que, só por si, chega para nos debruçarmos sobre o problema. Sobre o que entendemos como identidade explicitaremos já a seguir, mas desde já podemos declarar que é nossa convicção que a identidade existe, vive e transforma-se, por vezes de uma forma muito indisciplinada, diga-se.
Porém, também confesso que há uma posição de salvaguarda útil; a identidade é muito apetecida, porquanto possui uma substância um pouco informe e mutável, levando pessoas a crerem que esta pode ser conduzida para onde pretendem, o que já tem revelado resultados desastrosos ao longo da História da Humanidade. Obviamente que não nos deparamos com uma situação desta gravidade, antes uma manipulação da memória mais corriqueira, mais superficial, simultaneamente mais inofensiva, que se encontra disseminada com maior ou menor intensidade por todo o país, não sendo Setúbal um caso gritante de localismo à la minute.

Procurarei definir agora, de maneira sucinta, os conceitos-chave sobre os quais este pequeno texto versa.
Por identidade, entendemos uma determinada população específica, neste caso a sadina, que partilha um determinado território histórico, que possui mitos e memórias históricas comuns, uma cultura pública de massas específica comum, bem como um sistema económico próprio, se bem que integrado na economia geral do território português. Aliás, a identidade local dissemina-se numa maior, a identidade nacional, que é aquela que reconhece e atribui realidade jurídica a essa população. Trata-se de uma definição que revela a natureza complexa e abstracta da identidade local, que compartilha o seu espaço com outras identidades colectivas, com as quais se associa, sejam elas de classe, religiosas, étnicas, entre outras.
A memória, consiste no conjunto de mitos e de conhecimentos históricos, produzidos através das metodologias das ciências históricas, sejam elas paleográficas, arqueológicas, artísticas, etc., que permitem, a esse conjunto populacional específico, ter a noção da evolução do espaço comum, do conjunto urbano próprio e da população em si. A memória é, neste caso, para esse grupo identitário concreto, o instrumento de consciencialização de si.
O património, para além da definição jurídica consagrada na lei do património português, a 107/2001 de 8 de Setembro, corresponde, neste texto, ao conjunto de marcos visíveis e palpáveis, bem como aos invisíveis (localismos linguísticos, património musical, figuras importantes associadas à cidade) que perduraram até aos dias de hoje. Atestam a profundidade da memória e servem, simultaneamente, como instrumentos de narrativa dessa própria memória. Destes, no que concerne ao património material, temos de destacar um conjunto mais específico de objectos, que, pela sua beleza, significado colectivo, ou outra razão, se destacaram e a quem se lhes atribuiu, colectivamente, um significado maior – o que denominei “locais sagrados”. O seu equivalente em figuras históricas relevantes para a identificação colectiva, incluídas no património imaterial, denominei de “heróis antepassados”. Ambas as categorias, a do visível e a do invisível, são “símbolos identitários”. Quer os símbolos, quer o património em si, nas suas múltiplas naturezas, definem-se por duas características, o de poder evocar a memória e o de ser objecto, uma coisificação.
Deste modo, podemos concluir que o património (coisas que evocam o tempo) permite a construção de uma narrativa memorialista que fornece a consciência da identidade a toda essa população que vive na cidade. Por ser um instrumento de reavivação das lembranças colectivas, possui “poder simbólico”, o poder de fornecer sentido de coesão à totalidade da população sadina.
Por último, mas tratando-se da razão principal para a criação deste escrito, por mais imperfeito que se apresente nesta versão, está uma pessoa, uma setubalense de gema, que tive o privilégio de conhecer e de partilhar a minha vida; a ela devo o facto de ter deixado de me sentir um “estrangeiro” numa terra que não era minha … a ela devo essa apropriação emocional, que é a magia de transformarmos um lugar, em lugar nosso, tal qual o sempre tivesse sido, como numa experiência alquímica.
A ela este texto é especialmente dirigido, mas dedico-o a todos os sadinos, conforme à sua vontade. A têmpera das pessoas é testada nas adversidades. Quando troveja … está sempre presente, faz mesmo questão em o estar. O seu companheirismo é inexcedível. Obrigado “mana”.

2. – Origens e permanências

2.1 – Era uma vez, na Era dos Titãs…

Para procurarmos as raízes mais profundas da criação de Setúbal, temos de nos debruçar sobre histórias muito antigas, de que já poucos guardam memória nos dias de hoje. As “estórias” sobre a origem mítica desta cidade assumem uma forma escrita nos inícios do Século XVI e é a origem mítica, julgava-se (e creio que ainda hoje tal se mantém), que revelava o carácter da comunidade urbana.
A exemplo dos textos poéticos e dramáticos da antiguidade clássica[1], que caracterizavam as cidades de acordo com as suas lendas fundacionais e deuses protectores, a tradição historiográfica tardo-medieval europeia e cristã, para além de retirar as informações úteis para a sua investigação destas obras, acaba por importar igualmente alguns modelos e conceitos dessas mesmas obras. Temos de relembrar que a tradição cronística medieval consistia na elaboração de uma recolha de inúmeros dados retirados apenas de fontes escritas, pelo que os autores antigos assumiam o peso de autoridades (pois neles se encerrava toda a memória da humanidade), congregando-se, de maneira acrítica, informações, por vezes, contraditórias. Na realidade, tanto valia uma informação dada por um tratadista, como a de um poeta, num mundo que se pensava que havia sido criado cerca de 5000 a 3000 anos antes de Cristo. A história dessa criação é sobejamente conhecida, pois o livro sagrado do Génesis era interpretado de uma maneira literal, ou seja, o mundo havia sido criado por Deus em seis dias, tendo descansado no sétimo. Deus criou o homem com Adão, mas vendo que este estava só, adormeceu-o, dele retirou uma costela e fez a primeira mulher, Eva.
A decadência da humanidade era um facto continuadamente constatável, atendendo a que, ao princípio, os homens viviam muitos anos
[2] e estavam muito próximos de Deus, ao passo que, na Idade Média, o sagrado estava menos presente e a esperança média de vida era inferior.
Uma outra concepção histórica genericamente aceite era a de que a história só podia ser descoberta através da documentação e de que a Europa era o depositário das raízes do mundo antigo e das raízes orientais (judaísmo e cristianismo). Como forma de oferecer alguma profundidade histórica e sentido às nações europeias, os historiadores medievais procuraram criar associações entre alguns heróis míticos de segunda linha, bíblicos preferencialmente, e as diversas cidades e nações europeias. Tal era um comportamento generalizado para toda a Europa, constatável, de uma forma muito clara, na situação específica de Setúbal.
A narração mais arcaica da criação de Setúbal advém de um cronista real espanhol, quinhentista, Ambrósio de Morales. Para percebermos a narração sobre a criação de Setúbal, na sua totalidade, temos de relembrar antes, um episódio do Génesis. Deus, cansado da soberba humana e dos seus pecados, decide castigar a humanidade com a sua extinção. Porém, decide igualmente poupar um homem virtuoso e temente a Deus, chamado Noé. A este manda construir uma enorme barca, onde se colocasse um casal de cada espécie animal existente na terra. Noé cumpre os desígnios divinos e embarca com os animais e com a sua família. A espera não é longa, pois Deus envia um temporal que dura quarenta dias e quarenta noites. No final desta tempestade já não existia ninguém, para além daqueles que estavam na barca. Noé solta um corvo para averiguar se a tempestade havia passado, mas este não volta. Uns dias depois solta uma pomba branca
[3], que retorna com um ramo de oliveira no bico. Noé compreende, então, que já pode desembarcar e povoar toda a terra, com os seus doze filhos. A este episódio denomina-se “Dilúvio Universal”.
O povoamento da Península Ibérica é, segundo Ambrósio de Morales, desempenhado por Túbal, neto de Noé. Segundo o autor, Túbal aporta a Cádiz formando o primeiro núcleo urbano ibérico. Continuando a navegar ao longo da costa Sul e Oeste da Península, volta a parar na foz do rio Sado onde funda o segundo núcleo urbano peninsular, Setúbal, ou Set Túbal, o que significaria Sede/Lugar de Túbal.
Rapidamente esta versão vem a ser contestada pelos historiadores portugueses de quinhentos. André de Resende, o pai da arqueologia portuguesa, entra em contestação com Ambrósio de Morales. Tal é particularmente visível na Carta a Bartolomeu de Quevedo e n’ As Antiguidades da Lusitânia. A Carta a Bartolomeu de Quevedo é uma longa missiva de resposta de André de Resende a Bartolomeu de Quevedo, sacerdote da Catedral de Salamanca, sobre diversos temas relacionados com a História de Portugal e da Espanha. Nessa carta, André de Resende defende que os historiadores espanhóis estão longe de serem referências de idoneidade historiográfica, pois as suas paixões imperialistas cegam-nos em relação à verdade. Ambrósio de Morales é um dos alvos enunciados dessa crítica tão eloquentemente construída, mas igualmente mordaz. N’ As Antiguidades da Lusitânia, André de Resende debruça-se sobre a questão da localização de uma antiga cidade romana denominada Cetóbriga, que identifica como Tróia, na margem esquerda do rio Sado. A propósito dessa localização disserta sobre a teoria explicativa de Morales, desmontando-a até ao ridículo, dizendo-a pouco séria e inútil.
Gaspar Barreiros, outro antiquarista português do Século XVI, aluno de André de Resende em Évora, deixou-nos duas obras de interesse para esta problemática, A Chorographia e a Suma ou Descripçam da Lusitânia. A Chorographia corresponde a um “manual de viagem” entre Badajoz e Milão, onde o autor discute aspectos históricos dos vários lugares por onde se passa nesse trajecto. A propósito desses locais vai reflectindo, de igual modo, sobre a realidade da história antiga de Portugal. Nesse modelo enquadra a questão de Cetóbriga, desferindo duros juízos sobre a teoria de Morales. Na Suma, temos a melhor e mais completa análise quinhentista ao povoado romano de Tróia, segundo defendeu o historiador contemporâneo Fernando Castelo-Branco, onde, uma vez mais, não se mima o autor espanhol.
Por último, Amador Arrais, autor dos Diálogos, obra enciclopédica e de raro talento, também se debruça sobre este assunto, com igual mau resultado para o historiador espanhol.
É Fernão de Oliveira, discípulo e adversário temível de André de Resende, que vem recuperar a teoria pós-bíblica de Ambrósio de Morales, na sua História de Portugal. Todavia, a engenhosa mente de um dos mais brilhantes humanistas lusos do Século XVI recupera a teoria adaptando-a aos seus interesses. Em primeiro lugar recupera a dignidade do historiador espanhol, para, em seguida, o acusar de pequenos defeitos, humanamente compreensíveis, como o seu acesso patriotismo. Com isto, alicerçado num discurso muito convincente, Fernão de Oliveira vem defender que Setúbal foi, efectivamente, criada por Túbal, mas, como a própria declinação do nome indica, tratou-se da primeira cidade por si fundada na Península Ibérica. Set Túbal é-nos apresentada como a cidade matricial da civilização Ibérica, desta feita em território português.
Já no crepúsculo do intelectualmente brilhante Século XVI, Bernardo de Brito, com a monumental Monarchia Lusitana, vem reforçar a posição de Fernão de Oliveira, consagrando-a como a mitologia de Setúbal, à qual Bernardo de Brito adere com todo o entusiasmo e militantismo, que lhe é reconhecido, pelos seus estudiosos. Esta versão, veiculada por Bernardo de Brito, vai influenciar muita da produção historiográfica portuguesa até ao nascimento da Academia de História, no “Iluminismo” português do Século XVIII. Ainda no Século XX esta visão era criticada por historiadores e arqueólogos, o que é demonstrativo da previvência desta teoria mitológica como narrativa explicativa da génese da cidade de Setúbal. Podemos encontrar um paralelismo entre esta narrativa e a da fundação de Lisboa por Ulisses, o herói do outro poema épico atribuído a Homero, a Odisseia, se bem que no caso de Setúbal é de origem bíblica, enquanto que no caso de Lisboa é de origem pagã.
Resta-nos, contudo, tentar lançar algumas hipóteses explicativas para o porquê desta narrativa e do porquê da sua negação e recuperação adaptada. Na realidade, Ambrósio de Morales escreve, sobre patrocínio real, no contexto do delicado processo de junção das coroas de Castela e Aragão. Com essa associação política, nasce, igualmente, uma neo-hispanização teórica, que vem a resultar no nome de Espanha para essa nova realidade administrativa, derivada de Hispânia, o nome que os romanos davam à Península Ibérica como um todo. Efectivamente, da Hispânia romana, pouco ficava de fora com a junção de Castela a Aragão, somente a estreita língua ocidental, um país chamado Portugal. À criação da Espanha estava associada a noção de império, como forma de substituição dos regionalismos ibéricos, tendo, para tal, recuperado e valorizado a memória histórica do Império dos Visigodos como ideal político. É lógico, portanto, que Ambrósio de Morales sugira, como primeira fundação urbana, uma cidade que esteja na nova Hispânia, pois era esse o projecto com o qual estava comprometido.
Perante a associação de quase toda a Península Ibérica debaixo de uma só coroa, que tinha uma linha de acção agressiva, Portugal procura dar uma resposta a vários níveis, sendo um deles a produção intelectual, nomeadamente a histórica. Assim, de um panorama relativamente arcaico de produção cronística, em muito pouco tempo, mercê das bolsas régias para estudantes universitários se poderem manter em universidades estrangeiras e pela renovação da universidade portuguesa, assistiu-se a um salto qualitativo muito rápido, passando de um paradigma medievo para um paradigma humanístico-renascentista. É dentro desse novo modelo que estão André de Resende, Gaspar Barreiros e Amador Arrais, que possuidores já da noção de crítica histórica e de uso criterioso das fontes clássicas e quais delas seriam dignas de crédito na construção de uma narrativa histórica, reforçando as suas teorias com dados arqueológicos, destroem desapiedadamente a teoria de Ambrósio de Morales, bem como outras teorias de historiadores espanhóis, pois a Hispânia colidia, obviamente, com os interesses da nação portuguesa. É dentro desta nova historiografia portuguesa que temos a recuperação da figura de Viriato e da Lusitânia. Aliás, o primeiro autor a utilizar o termo lusitanos como sinónimo de portugueses é André de Resende. Para além de lusitanos significarem portugueses, significavam, simultaneamente, resistência e valentia contra os imperialismos, antes romanos, à altura, espanhóis.
Com a entrada dos exércitos espanhóis em território português, em 1580, e com as duas coroas ibéricas unidas na cabeça de um e mesmo rei, a estratégia independentista sofre adaptações, o que trouxe consequências na estratégia de defesa intelectual e memorialista portuguesa. Nisso, Fernão de Oliveira foi arguto, como sempre lhe reconhecemos. Na realidade, Fernão de Oliveira recupera a teoria de um historiador espanhol para reforçar a autoridade da sua própria teoria. Ao colocar Setúbal como a primeira cidade ibérica, procurava reforçar a superioridade de Portugal face a Espanha; e nada melhor para isso do que usar um espanhol, respeitado pelos espanhóis, para demonstrar bem as diferenças. Bernardo de Brito explora o mesmo filão, ou seja, uma espécie de concorrência histórica entre as duas nações, apontando para a vitória dos lusitanos.
Assim, e concluindo com o “Era uma vez, na Era dos Titãs…”, a narrativa mítica da génese da cidade de Setúbal é um aspecto instrumental de uma discussão mais ampla sobre predominância política na Península Ibérica. Por razões, pensamos agora claras, foi a última versão que se consolidou na imagética sadina. Hoje esquecida, esta versão mítica da criação de Setúbal foi, todavia, estimada pelos setubalenses, que a conheciam tão bem como a versão veiculada por André de Resende, Gaspar Barreiros e Amador Arrais. Enquanto que a versão dos renascentistas se mantinha pela autoridade e credibilidade dos três historiadores (apesar da maioria do crédito ir para André de Resende, sem sombra de dúvida), a versão neo-bíblica era mantida pois respondia a outras dimensões que a aridez racionalista dos humanistas deixava em aberto; encontrou a sua continuação nos campos da criação poética e artística.

2.2 – Era uma vez, outra vez…
As construções teóricas sobre as origens de Setúbal, como já deve ser evidente por esta altura, estão submetidas às possibilidades dos tempos em que são produzidas. Assim, não é de espantar que os antiquaristas renascentistas, André de Resende, Gaspar Barreiros e Amador Arrais, tenham rejeitado a hipótese neo-bíblica de Túbal. Para além da sua rejeição, estes autores fizeram um conjunto de análises de terreno e optaram pela construção de outras hipóteses explicativas para a questão da origem da cidade sadina.
Para tal recuaram até à época que maior fascínio exerceu sobre os humanistas, a antiguidade clássica. Pelo menos André de Resende e Gaspar Barreiros passaram e permaneceram em Setúbal, na procura da resolução desse mistério. Essa permanência encontra a sua explicação nas monumentais ruínas de Tróia, cidade romana que fica na margem exactamente oposta do rio Sado. Quer um, quer outro, observaram as ruínas ainda visíveis no local e dissertaram longamente sobre estas, bem como sobre outras, de menor imponência, na região. Fontes documentais da antiguidade clássica[4] referiam uma cidade romana de alguma importância na zona entre Lisboa (Olisipo) e Alcácer do Sal (Salacia), a cidade de Cetóbriga.
Essa cidade de Cetóbriga era identificada com a cidade subterrada nas areias de Tróia, contudo, o sufixo briga colocava alguns problemas, pois tratava-se de um sufixo de tradição céltica que apontava para um povoado fortificado num ponto alto. Ora, a península de Tróia, como sabemos, não corresponde a uma zona montanhosa, bem como não apresenta qualquer vestígio de ter possuído uma muralha. No entanto, os autores concordavam que esta era a única possível localização, visto que era o local que apresentava vestígios romanos de particular relevância.
O encanto que as ruínas de Tróia exercem foi determinante para que, logo no Século XVIII, fosse desenvolvida uma primeira escavação arqueológica, dirigida por Manuel do Cenáculo, Prelado Maior de Beja e Évora, uma das mentes mais avançadas do Iluminismo em Portugal. Só em 1850, através da iniciativa do prelado Gama Xaro, assistiu-se a uma nova acção significativa nos areais de Tróia, com a constituição da Sociedade Arqueológica Lusitana, a primeira associação de arqueologia em Portugal, fundada em Setúbal. Essa actividade arqueológica durou até 1857, altura em que a Sociedade é oficialmente extinta. Seguiu-se nova intervenção por arqueólogos estrangeiros que foi suspensa pela população de Setúbal, irada pelo facto de aquele sítio arqueológico estar a ser pilhado.
Aliás, Tróia foi alvo do interesse da maior parte dos mais famosos arqueólogos portugueses, que ali trabalharam, senão sistematicamente, pelo menos pontualmente. É o caso de Leite de Vasconcelos, fundador do Museu Nacional de Arqueologia, Manuel Heleno, segundo director desse museu e regente principal das cadeiras de arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Fernando Bandeira Ferreira, assistente da Faculdade de Letras, D. Fernando de Almeida, terceiro director do MNA e regente de cadeiras de arqueologia da Faculdade de Letras.
Assim, desde finais do Século XIX que o sítio de Tróia estava associado à maior instituição da arqueologia portuguesa. Com o 25 de Abril de 1974 e a posterior criação do IPPC (Instituto Português do Património Cultural), actual IPPAR (Instituto Português do Património Arquitectónico) a tutela da cidade romana transita do Museu Nacional de Arqueologia para a nova instituição, onde hoje se mantém, continuando a motivar os investigadores de arqueologia, antropologia e história da arte, materializadas em novos estudos e diversas publicações.
No entanto, não estamos a seguir a história da cidade romana de Tróia, mas sim a saga e labor da investigação à volta da localização precisa de Cetóbriga. O facto de existir uma cidade romana na foz do Sado não sossegou os pesquisadores, devido ao significado possível para o termo briga. Vários investigadores dedicaram o seu tempo a esta antiga questão, mas foi, do nosso ponto de vista, António Inácio Marques da Costa, amigo e colaborador de Leite de Vasconcellos (o qual também se dedicou à questão), natural de Leiria e radicado em Setúbal, onde chegou a exercer as funções de Presidente do Município, que mais empenho colocou nessa tarefa.
António Inácio Marques da Costa recusa a tradicional colagem de Cetóbriga a Tróia, celebrizada por André de Resende e reafirmada por Emilio Hübner, no final do Século XIX, famoso investigador alemão, da antiguidade clássica, que veio dar um novo alento aos estudos sobre a época romana em Portugal. Diga-se, em abono da verdade, que Hübner não concordava frequentemente com André de Resende, acusando-o de forjar epígrafes latinas, mas, neste caso, havia sido da mesma opinião que o investigador quinhentista português.
Marques da Costa aponta três razões para a recusa daquela localização para Cetóbriga. Em primeiro lugar, afirma que Tróia não ficava num local alto e fortificado. Em segundo, o Itinerário de Antonino não permitia supor que a via entre Lisboa e Alcácer passasse pela margem Sul do Sado. Em terceiro, porque recusava a hipótese de que Tróia já tivesse estado ligada à margem Norte e que, devido a movimentos de marés e alterações do leito do rio, se tivesse deslocado para a outra margem (a Sul).
Quanto à hipótese de se tratar de Setúbal, avançada por João Baptista de Castro, igualmente nos anos finais do Século XIX, alega que a cidade também está num sítio plano e que nos montes que ocupa não há nenhum achado que responda às características que devia apresentar.
Resta, segundo o autor, na esteira da opinião veiculada por José Leite de Vasconcellos n’ As Religiões da Lusitânia, encontrar um local alto e amuralhado, ocupado por Celtas, que se tivesse mantido habitado em tempo de domínio romano. Assim, põe sobre a mesa o Castro da Rotura, junto da ermida de S. Luís. Todavia, o investigador que havia publicado diversos estudos sobre este sítio, diz-nos que este povoado fortificado havia sido abandonado muito antes da ocupação céltica (ou seja, Idade do Ferro), sem ter tido ocupação nem na Idade do Ferro, nem nos séculos de dominação latina.
Como segundo caso possível aponta Alferrar, onde foram encontrados, por ele e por Arronches Junqueiro, abundantes vestígios de uma ocupação romana, mas os vestígios de uma ocupação anterior são demasiados frágeis. Para além disso não apresenta qualquer vestígio de muralha, pelo que é rejeitada, a essa altura dos conhecimentos, como possível Cetóbriga. Note-se que as análises de António Inácio Marques da Costa são publicadas em 1926, em quatro números da revista sadina Cetóbriga.
Por último, aponta o Castro de Chibanes, que apresenta ocupação desde o Neolítico, passando pelas sucessivas idades do Cobre (actualmente Calcolítico), do Bronze e do Ferro, até ao período de domínio romano. Trata-se, portanto, de um povoado fortificado num alto, ocupado tanto por Celtas como por Romanos, pelo que, Chibanes é a localização mais provável para Cetóbriga. No que respeita a Palmela, António Inácio Marques da Costa diz-nos que não há vestígios pré-romanos, nem romanos, fiáveis e seguros. O trabalho de António Inácio Marques da Costa, que também se dedicou a Tróia, permaneceu como a última palavra séria sobre este tema até 1957.
A 20 de Maio de 1957, aquando da instalação do saneamento, um feliz acaso colocou-me, naquele dia, entre amargurado e deslumbrado, ante um espectáculo inédito. Em alvoroço, o mulherio desgrenhado da antiga Rua Direita de Troino, de mistura com o rapazio descalço e irrequieto, entre pescadores de tez bronzeada, vendia, às mancheias e, até, às alcofas, inconscientes do seu valor, autênticas moedas romanas do século IV. Digo entre amargurado e deslumbrado, porque via, nas mãos da pobre gente, que sonha com mouras encantadas e tesouros escondidos, um autêntico tesouro a esbanjar-se e a perder-se para a historiografia nacional. As peças numismáticas logo correram, levadas por pobres e ricos, pelas ruas e praças de Setúbal. Apreendidas muitas, não todas, pela Polícia de Segurança Pública, encontram-se depositadas, no edifício da Câmara Municipal, 11091 destas numismas. A picareta de um operário das obras de saneamento acabara de estilhaçar uma ânfora. Deste escrínio de valiosa documentação, logo saltaram aquelas moedas, como que espavoridas, quase irreconhecíveis e deslumbradas pela luz forte de um sol fascinante, depois de um repouso de quase duas vezes milenário, para dizerem aos historiadores que tudo o que se tem dito e escrito sobre as origens de Setúbal, necessita de atenta revisão e de profunda correcção. (Costa:1960,6)
Este tesouro monetário chegaria às 21000 moedas, com a descoberta de uma segunda ânfora. Com estas descobertas ressurge a problemática da localização de Cetóbriga e quem a relança é José Marques da Costa (não confundir com o já referido António Inácio Marques da Costa), professor do ensino técnico profissional, membro da Comissão de Arte e Arqueologia da Câmara Municipal de Setúbal e do Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia (sediado no Museu Nacional de Arqueologia).
José Marques da Costa realiza o acompanhamento arqueológico de todas as valas abertas na cidade de Setúbal para instalar o saneamento público e as descobertas que se seguiram foram impressionantes. Até esse momento não se conheciam vestígios romanos em Setúbal. Fábricas de salga de peixe, como se conheciam em Tróia, colunas, alicerces de estruturas, entre muitos vestígios, situados entre a Rua da Brasileira, a Oeste e Palhais, a Este. A extensão da dispersão dos materiais era extraordinária. Cerâmicas finas, cerâmicas comuns, ânforas, tudo em quantidades que não permitiam grandes dúvidas.
José Marques da Costa não tinha qualquer dúvida, Cetóbriga estava finalmente encontrada, jazia sob as ruas de Setúbal. Com esta convicção, com o peso esmagador dos dados recolhidos, dirigiu-se à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a 16 de Dezembro de 1958, para apresentar as descobertas feitas no subsolo de Setúbal, no I Congresso Nacional de Arqueologia, a maior e mais importante reunião de arqueologia em Portugal, naqueles anos.
A apresentação à comunidade dos arqueólogos portugueses, contudo, não correu nada como José Marques da Costa esperava. No público encontrava-se Fernando Bandeira Ferreira, que coadjuvava Manuel Heleno nas escavações de Tróia, um dos mentores da tertúlia arqueológica de Campo de Ourique (Lisboa), onde entravam investigadores como Justino Mendes de Almeida, Eduardo da Cunha Serrão, Prescott Vicente e José João Gomes. Trata-se, na minha opinião pessoal, de um dos maiores arqueólogos que Portugal já teve. Porém, o brilhantismo de Bandeira Ferreira não foi harmonizado com simpatia pelos esforços do professor da Escola Técnico-Profissional sadina, actual Escola Sebastião da Gama. José Marques da Costa passou por uma horrível humilhação que não terminou ali. O Setubalense, periódico local que nos acompanha desde 1857, foi outro campo desta batalha pela verdade histórica. Os golpes de misericórdia surgem pelas mãos de Fernando Bandeira Ferreira, em O problema da localização de Cetóbriga, de 1959 e Fernando Castelo-Branco, Aspectos e problemas arqueológicos de Tróia de Setúbal, de 1963. Com estas publicações, os dois mais brilhantes estudos sobre Cetóbriga, o Novos elementos para a localização de Cetóbriga, de José Marques da Costa, editado pela Câmara Municipal de Setúbal em 1960, bem como a sala de arqueologia do Museu de Setúbal/Convento de Jesus, de 1961, resultaram em nados-mortos. José Marques da Costa estava cientificamente descredibilizado, fruto da destrutibilidade da academia.
Esta situação vem a marcar de forma radical, parece-nos, os percursos investigatórios e estudos do então jovem aprendiz de arqueólogo, Carlos Tavares da Silva, que inicia as suas publicações sobre esta cidade em meados dos anos 60 do Século XX, ou seja, quando estas feridas eram ainda muito recentes.
De facto, do nosso ponto de vista, Carlos Tavares da Silva incarna perfeitamente a tradição dos investigadores que o antecederam, sadinos por nascimento ou por opção, mas revela uma acuidade cautelosa. A arqueologia estava a mudar, muito, de actividade romântica em actividade pré-profissional. A situação de José Marques da Costa, provavelmente, também terá contribuído. Aliás, uma das suas primeiras publicações sobre Setúbal não nos parece inocente. Trata-se do estudo sobre a necrópole romana de S. Sebastião, publicado em 1966, onde revela que, afinal, António Inácio Marques da Costa tinha tido conhecimento de que existia ocupação romana em Setúbal, antes de 1926, pois, aquando da construção do túnel ferroviário Palhais-Fontainhas, obra muito polémica na época, havia sido descoberto um cemitério romano, o que entra em clara contradição com o que ele havia afirmado nos seus estudos sobre Cetóbriga.
Com grande paciência, vem realizando intervenções no subsolo de Setúbal, através do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, desde os anos 70. Com a intervenção arqueológica da Travessa dos Apóstolos, na freguesia de Santa Maria, no início dos anos 90, vê recompensada a sua busca sistemática. Numa sondagem de 2 por 2 metros são detectados materiais em continuidade estratigráfica desde o Bronze Final, passando pela Idade do Ferro I e Ferro II, ao romano Alto-Imperial.
A zona de Santa Maria onde esta intervenção ocorreu corresponde ao sopé de um morro, o morro de Santa Maria. Com esta descoberta Carlos Tavares da Silva pôde afirmar que, afinal, Setúbal sempre corresponde a Cetóbriga. Era difícil não o fazer, pois, afinal, estava perante um monte, com materiais com as cronologias necessárias para colocar tal hipótese e quanto à muralha, é tão difícil sustentar que não existiu como que existiu, visto que a zona está completamente urbanizada. Faltava, porém, verificar se Setúbal tinha sido ocupada ao longo da Alta Idade Média, visto que há referências a Cetóbriga no Anónimo de Ravena, no Século VII e em Idrisi, no Século VIII. No entanto, havia que resgatar a dignidade de José Marques da Costa, bem merecida por sinal, pois muito se lhe deve. Setúbal voltava a tornar-se numa hipótese muito provável para o assentamento de Cetóbriga, mais do que Chibanes, que tem apenas uma curta ocupação romana. No entanto, desde os anos 90, com a criação do Gabinete de Arqueologia e na sequência dos trabalhos por ele preconizados, Palmela surge, na realidade, como uma outra hipótese plausível. Alguns materiais da Idade do Ferro, bem como de período romano, para além dos períodos visigótico e muçulmano, têm surgido na vila.
Aliás, com as investigações dos materiais mais recentes de Tróia, António Rafael Carvalho vem demonstrar, se bem que ainda numa fase inicial de investigações, que Tróia, ao contrário do que se pensava, pode ter sido ocupada até ao Século VIII.
Desde que se iniciaram os trabalhos arqueológicos sistemáticos desenvolvidos no Centro Histórico de Setúbal, ou seja, na segunda metade dos anos 70 (infelizmente não tão sistemáticos como deveriam ser) e principalmente após algumas importantes descobertas de Carlos Tavares da Silva com o MAEDS
[5], como as fábricas de salga de peixe da Praça de Bocage[6] e da Travessa de Frei Gaspar[7], os fornos de produção de ânforas Dressel 14 e cerâmica comum do Largo da Misericórdia[8] e da Quinta da Alegria[9] e as Logiae da Travessa dos Apóstolos[10], que é aceite que Cetóbriga corresponde, efectivamente, a Setúbal.
No entanto, apesar deste acordo em relação à localização de Cetóbriga, parece-nos que se trata de uma aceitação provisória. Palmela e Tróia, proximamente poderão fazer ressurgir esta tão difícil questão. A história da localização de Cetóbriga, tão importante para o estabelecimento da matriz identitária de Setúbal, está longe de estar concluída.

2.3 – Era uma vez …uma vez mais
As raízes sadinas têm vindo a ser, até aqui, discutidas numa perspectiva unicamente urbana. Parece-nos, todavia, redutor. Antes de existir uma cidade é necessário existirem pessoas, pessoas que se possam aglutinar num projecto associativo em prol da construção de uma comunidade que vem a desenvolver-se até formar um núcleo urbano. Somente a hipótese explicativa neo-bíblica dispensa estes considerandos, mas como podemos rapidamente perceber, a hipótese neo-bíblica já não é equacionada como explicação racional, mas sim como arquétipo mítico, o que poderá vir a constituir-se como uma excelente fonte de inspiração contemporânea, caso seja relembrada e usada condignamente.
Os primeiros trabalhos sobre a Pré e Proto-História da região remontam a Carlos Ribeiro, na década de 70 do Século XIX, logo seguido pelos já citados investigadores setubalenses António Inácio Marques da Costa e Arronches Junqueiro, nos finais de oitocentos e transição para novecentos. Aliás, a historiografia da Pré e Proto-História desta região é rica, muito rica mesmo.
Todavia, não vejo grande relevância para aquilo que aqui pretendemos explorar, fazer uma narrativa exaustiva desses estudos, mas pretendo, antes, captar a atenção para alguns pormenores de interesse para o assunto em discussão. Assim, nos Séculos XVIII e XIX a hipótese explicativa bíblica do mundo sofre rudes golpes descredibilizadores no mundo Ocidental, com os avanços das diversas áreas científicas naturais como a Geologia e as Biologias. A Origem das Espécies de Charles Darwin é de uma profunda indigestão para a Igreja, fazendo extremar discursos e criando dois partidos conflituantes que, nas suas retóricas antagonistas, raiaram ou ultrapassaram mesmo, o absurdo. O conflito entre ciência e religião ainda hoje se mantém, felizmente mais atenuado. Esse combate por verdades não permite, por vezes, a observação de realidades concretas.
De facto, muito do que se sabe sobre evolução humana se deve a homens da Igreja, como Teilhard de Chardin, ou que um dos grandes impulsionadores da Pré-História em Portugal foi o Abade Henri Breuil, já para não falarmos do Abade do Baçal, entre outros. Na realidade, a arqueologia portuguesa até à revolução liberal teve muitos poucos investigadores que não pertencessem aos quadros eclesiásticos. Depois da revolução de 1820, manteve sempre uma representação importante de investigadores na arqueologia, até à profissionalização da actividade. Dito isto, queria salientar que a introdução da Pré-História na arqueologia portuguesa não suscitou convulsões teológicas e que a substituição da versão dos Génesis pela teoria Evolucionista foi feita de forma natural.
A ocupação humana na região de Setúbal remonta, indiscutivelmente, ao Paleolítico Médio, com a descoberta de fragmentos ósseos de neandertalenses. Segue-se um contínuo ocupacional, pois existem diversos testemunhos de ocupação humana no Paleolítico Superior. Do Epipaleolítico (VI e V milénos a. C.) são os conhecidos concheiros do Sado, não tão famosos como os seus congéneres de Muge, no rio Tejo, que estão ligados ao Homo Afer Taganus, uma das histórias mais empolgantes e interessantes da arqueologia portuguesa. Os concheiros, montes artificiais feitos pela acumulação de detritos alimentares de moluscos, conforme ao nome, foram estudados, no Sado, por Manuel Heleno, nos anos 50 do Século XX, arqueólogo já referido a propósito de Tróia e, nos anos 80 por José Morais Arnaut.
Contudo, é só a partir do Neolítico que nos devemos preocupar, dado que até ao início da actividade agrícola é impossível equacionar uma identidade relacionável com o território, visto que os grupos humanos são nómadas, ou, no Epipaleolítico, semi-nómadas. Como parece ser evidente, por esta característica de extrema mobilidade, a identificação do ser humano com o território não é de domínio/posse mas, muito provavelmente, de apropriação/usufruto. A identidade grupal está relacionada com a pertença a um determinado grupo específico, seja de organização familiar ou seja clânica.
Mesmo os vestígios da fase inicial e média do Neolítico pautam-se por serem pobres indicadores dessa possessão territorial, visto serem pequenas comunidades, localizadas em zonas baixas, planas e extensas junto ao mar ou a cursos de água, apresentando um padrão económico baseado ainda na caça e pesca e só, subsidiariamente, na agricultura, não existindo, por ora, grandes indícios de domesticação de animais. Somente do Neolítico recente (genericamente entre 3100 – 2500 a. C.) passamos a assistir a uma transformação do território que implica a possessão que procuramos, para permitir imprimir a noção de domínio e posse de um território. O caso mais famoso é o das grutas artificiais da Quinta do Anjo (Concelho de Palmela), escavadas com vista a estabelecer tumulações, alvo de uma recente monografia de Joaquina Soares, pelo que me escusarei a comentar, remetendo para essa obra a sua análise. Outro local de grande interesse é a Lapa do Fumo, não pela transformação da paisagem, mas pela importante investigação arqueológica ali desenvolvida por Eduardo da Cunha Serrão e Gustavo Marques, publicada em 1971. Por último, a Lapa do Bugio, escavada por Rafael Monteiro, Georges Zbyszewski e Otávio da Veiga Ferreira, nos anos 60, também tem, evidentemente, grande importância. Um caso respeitante a Setúbal deve ser referido, correspondendo a alguns achados ocasionais de pedra polida, do período neolítico final ou do calcolítico, que foram publicitados por Otávio da Veiga Ferreira, em 1951, junto à Rua General Daniel de Sousa.
Mas se o Neolítico não nos satisfez de uma forma suficiente, pelas limitações com que a investigação arqueológica se tem debatido, os períodos que se lhe seguem já são profícuos em indicadores de identidades ferozmente demarcadas. Com a entrada nas idades dos metais, delimitam-se territórios, fortificam-se povoados e defendem-se, pela guerra, interesses económicos (agro-pecuários e comerciais). Existem vários castros, ou povoados construídos num local alto e amuralhados a co-existirem, em simultâneo, no tempo, pelo que, é mais que provável que, nem sempre as relações fossem amistosas e estritamente comerciais. Estas épocas, que já haviam prendido a atenção de vários arqueólogos de renome, como no caso da escavação da Roça do Casal do Meio, por Spindler e Veiga Ferreira (publicado em 1973), importantíssimo monumento funerário do Bronze, para não recuarmos aos inevitáveis António Inácio Marques da Costa e Arronches Junqueiro, vai captar a maior atenção de dois jovens arqueólogos setubalenses, que estavam em início de carreira. Trata-se de Victor S. Gonçalves, actual coordenador do curso de Arqueologia da Universidade de Lisboa e Carlos Tavares da Silva, já referido abundantemente.
Com o início dos contactos com os mercadores mediterrânicos, que chegam à região no Século VII a. C., segundo Carlos Tavares da Silva, temos de iniciar a questão da posse do território em outros moldes.
A 12 de Março de 1958, Fernando Castelo-Branco apresenta uma comunicação no Museu Nacional de Arqueologia, numa sessão do Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia. A comunicação versava sobre uma leitura e interpretação de uma parte de um poema de Rufio Festo Avieno, escrito no Século IV d.C., conhecido como Ora Marítima, mas que para tal utilizou descrições geográficas hoje perdidas de autores que em muito o precederam no tempo. Calcula-se que as fontes helenísticas utilizadas para o território actualmente português remontem ao Século VI a. C.. A hipótese colocada por Castelo-Branco para Achale, topónimo referido no texto como insula, ou seja, ilha, era que correspondesse actualmente à Costa da Galé. Estando presente nessa apresentação Fernando Bandeira Ferreira, gerou-se uma discussão, tendo resultado numa outra publicação, no ano seguinte, deste último autor, onde demonstra que a Achale, ou Ilha Silenciosa (ou Ilha Doce, ou, ainda Ilha Tranquila) da Ora Marítima corresponde à actual Península de Tróia.
Quanto ao facto de Tróia ter sido uma ilha, parecem subsistir poucas dúvidas após o trabalho de Prescott Vicente, de 1967. Aliás, de Ácale, cita, do poema já referido, “Ácale lhe chamam os que lá vivem…”, concluindo que a ilha era habitada. É escusado referir o que é que esta interpretação implica, não só relativamente aos problemas que ora temos entre mãos, mas em relação ao problema anterior, de Cetóbriga.
Identifica também a ponta da Península de Santa Catarina, no estuário do Sado, com a ilha de Petânion. O rio Sado é referido como rio Anas[11], o Cabo Espichel como Cabo Cêmpsico e Sines como Cabo Cinético[12]. Para além destas indicações geográficas preenche a região com três distintos povos. Os Cempsos ocupariam a região da Arrábida até à foz do Sado. Os Cinetes ocupariam desde a foz do Sado para Sul, correspondendo, grosso modo ao Baixo Alentejo. Todavia o caso torna-se ainda mais confuso, pois, também a foz do Sado, era fronteira de um terceiro povo, os Sefes, que ocupavam as duas margens do rio Tejo e detinham território até à ilha de Petânion, onde fazia a fronteira com território dos Cinetes.
Como é evidente, a Ora Marítima de Avieno levanta-nos mais questões do que nos oferece respostas
[13]. A começar, basta que perguntemos a quem pertencia Tróia. Segue-se a questão de a quem pertenceria o núcleo populacional do morro de Santa Maria. Afinal, onde é que começa o território de quem? Só com a arqueologia obtemos mais pistas. E após a questão das fronteiras, que tipo de povos são estes? O que é que os define? Padrões linguísticos distintos, etnias diferentes, padrões distintos de vivência sócio-económica? Uma vez mais, só a arqueologia fornece pistas.
Uns Séculos depois voltamos a ter referências aos povos que aqui habitavam, desta feita por Gaio Plínio Secundo. Coisas mudaram, coisas se mantiveram. De facto, é espantosa a continuidade do território dos Cempsos, rebaptizados por Plínio em Barbarii, termo muito pouco carinhoso. Na realidade, o estudo proto-histórico realizado através da identificação e caracterização de vestígios materiais com base nas etnias apontadas pelos autores clássicos encontra-se, claramente, em desuso, porquanto existem demasiadas incongruências quando se observam os resultados provenientes de investigações arqueológicas. Tanto pior quando a fonte utilizada é um poema que se inspira em textos que o precedem em cerca de mil anos.
No que respeita a essas investigações arqueológicas, podemos dizer que muito trabalho já foi realizado, mas sabemos também que é ainda demasiado cedo para tirar conclusões realmente acertivas. Contudo, há algumas conclusões gerais que devemos reter. Alcácer do Sal era o mais importante núcleo urbano existente na região do rio Sado, pelo que, é naturalmente que assume, no domínio romano, o papel de capital, de civitate, da civitas, do território no qual Setúbal estava integrado. É provável que a foz do Sado funcionasse de uma forma organicamente complementar a nível económico, pois de outra forma teria sido difícil que se tivesse instalado uma feitoria fenícia em Abul, bem como dificilmente existiria uma homogeneidade no tipo de materiais orientais (comercializados, portanto), que se encontraram em Alcácer e Setúbal. De facto, Alcácer corresponderia certamente ao porto de exportação de cobre do Alentejo, razão pela qual os povos mediterrânicos aqui vinham comerciar. Setúbal, à época, muito provavelmente, exerceria a função de controlo da barra e de porto complementar, estando possivelmente subordinada a Alcácer. O Castro do Pedrão e o Castro de Chibanes, aparentemente, lucraram igualmente com o facto, pelo que as relações de poder, território e autoridade apresentam-se de tal modo complexas que não encontram ainda uma resposta eficaz.
O próprio processo relacionado com o outro estuário navegável, o do rio Tejo, apresenta-se, de igual modo, extraordinariamente complexo, com ambas as margens da foz do rio abundantemente ocupadas, bem como o seu interior com Móron (Chões de Alpompé) e Santarém, muito próximas também.
Se Ácale do poema corresponde a Tróia, já não subsistem grandes dúvidas, ou, pelo menos existe um certo consenso (até quando?), mas no que se refere à interpretação categórica de Prescott Vicente acerca de Tróia ser povoada, não há um único dado arqueológico que a sustente, mas, em verdade, pouco de Tróia foi ainda escavado.
Parece-nos precoce, consequentemente, concluir o que quer que seja; é claramente um assunto em aberto…

2.4 – Evoluções e permanências
Até aqui temos tratado das raízes, das origens arquétipas de Setúbal. Como podemos concluir, apesar do sintetismo com que o tema foi tratado, tratam-se de assuntos, e não apenas de um assunto, o que atesta a riqueza da génese da cidade. Não existe uma versão linear, mas antes várias versões cientificamente possíveis, para além das cientificamente condenadas, todas elas com séculos de reflexão e com muitos enigmas ainda por resolver. Se a aparente diversidade de hipóteses genésicas se pode tornar confusa, é também essa mesma diversidade, contrária ao unilateralismo determinista, que faz com que o nascimento de Setúbal seja um tema apaixonante. Aliás, esta diversidade atesta uma riqueza intelectual contínua desde o Século XVI, contrária ao lugar comum de que “não há cultura em Setúbal”. Em verdade, ela existe; grandes quantidades de massa cinzenta em suspensão gravitam no seu entorno, verificável, não só pela consciência temporal da história, mas também na transversalidade da actualidade, com inúmeros artistas, escritores, poetas, músicos, cientistas e intelectuais.
Porém, não é por este discurso realista, que poderia ser confundido com optimista, que pretendemos prosseguir. Não esconderemos que existem situações que não funcionam, como será claro no ponto 3, mas, mais grave do que essas situações, é o mal-estar social, perceptível ao longo de toda a pirâmide classista desta cidade. Sobre esse mal-estar social procuraremos agora fazer uma reflexão, mas, note-se, desde já, que mais que uma resposta, deve ser entendido antes como um contributo a ser ponderado, pois não pretendemos oferecer mais do que um ponto de vista, pelo que, vale o que vale, nada mais do que isso.
Estes cuidados são importantes, pois, muitas vezes, olhamos a história social como uma fórmula matemática para a compreensão das glórias e decadências dos povos, teorias determinísticas pelas quais não milito.
Assim, e depois do “era uma vez”, narraremos, agora, o que se sucedeu após. Conforme já informámos, a ocupação humana em Setúbal remonta ao Bronze Final, mas mais provavelmente à Idade do Ferro. O facto de se ter centrado algum tipo de povoamento no morro de Santa Maria revela que esse assentamento estava, de uma forma invariável, ligado economicamente ao rio. Essa intenção humana de assentamento neste local terá de ter uma explicação mais provável do que a actividade piscatória, por diversas razões. De facto, em Chibanes foram encontrados anzóis, o que atesta que as populações que viviam nos montes da região de Palmela tinham acesso directo ao mar, pelo que, só por si, não justificaria um povoamento.
O controlo e sinalização da barra é uma probabilidade, mas, neste momento, desconhecemos se o sistema de fachos existente, garantidamente, nas épocas romana[14] e medieval[15], remontaria à Idade do Ferro. Não há dados que o provem, mas, conforme Ana Arruda sublinha, há sempre ocupação humana na foz dos rios navegados pelos mercadores fenícios, mais ainda onde instalam feitorias comerciais. Um bom caso de comparação parece-nos ser o do rio Arade, com a feitoria do Cerro da Rocha Branca, perto de Silves.
Outra hipótese, que não exclui a anterior, é o de servir como plataforma comercial com o interland montanhoso, onde se concentram os castros da Idade do Ferro, evitando que os mercadores mediterrânicos se aventurassem pelas montanhas. A transição de poder entre os Cartagineses para os Romanos não parece ter favorecido, de modo algum, esse núcleo populacional, visto que os achados desse período são ainda mais raros que os da Idade do Ferro. Setúbal tem um surto construtivo, sem qualquer dúvida, em pleno Século I d. C.. Essa realidade, constatável em quase todos os locais que apresentam estratigrafia suficiente, atestam que o crescimento de Setúbal é rápido, tal como a construção de Tróia.
Quer de um lado da foz do Sado, quer do outro, houve um investimento consciente, com verbas avultadas, que transformou a paisagem de uma forma significativa. O objectivo parece ser evidente, a criação de um núcleo industrial de enormes proporções, com vista a uma “industrialização monolítica”, baseada nos produtos transformados de peixe. É evidente que esta “indústria monolítica” desenvolveu outras actividades, essenciais ao seu bom funcionamento. Assim, a pesca teve de ter um incremento significativo, bem como a extracção de sal terá de ter sido realizada em moldes quantitativamente significativos. Os vasilhames, as famosas ânforas, têm, actualmente, muitos dos seus centros produtores bem conhecidos. Outras actividades, como a agricultura, tiveram de dar resposta a um aumento e concentração de população extraordinário, atendendo a que o Sado não fica próximo do poder central, ou seja, Roma. A construção civil e pública, estradas, etc., tiveram de ser criadas. A navegação de longa distância trouxe mercadores, oficinais de reparação, calafates, carpinteiros, esteireiros…
A “industrialização monolítica” a que aludimos fez com que, em pouco tempo, os núcleos urbanizados da foz do Sado, muito provavelmente, ultrapassassem em população e poder económico a sede administrativa, Salacia (Alcácer do Sal). Contudo, como as elites aí se concentravam, aproveitariam, certamente, os rendimentos que aqueles povoados lhes ofereciam. É difícil imaginar que Tróia e Setúbal funcionassem de um modo separado, como povoações bem distintas, isto porque, Tróia, oferecia o melhor porto natural da zona e Setúbal oferecia outras virtudes, como as matérias-primas (pedra de construção, a cal, as argilas para construção e para vasilhame industrial e do quotidiano), bem como toda alimentação dos habitantes da margem Sul estava dependente do que era embarcado na margem Norte. Os cereais, o vinho, o azeite, os frutos, a carne, provinham do anel produtivo das villae (grandes quintas) do entorno de Setúbal, complementadas pelas do estuário do Sado.
Teriam existido crises económicas neste “paraíso” do grande capital, pois, no Século III existem grandes transformações nas fábricas, tornando-se mais pequenas e mais numerosas. O tipo único de vasilhame é substituído por variados vasilhames-tipo, o que indica, provavelmente, que os grandes investidores, que deviam assegurar o correcto controlo do mercado, foram substituídos por pequenos e médios proprietários, passando o mercado a estar mais dependente das firmas de transporte marítimo. Esta mudança parece ter favorecido a autonomia das comunidades da foz do Sado, pois é a partir desta fase que Cetóbriga começa a atingir alguma notoriedade. No Século V, com a falência dos circuitos marítimos imperiais, pois o Império romano estava em colapso, uma profunda crise instala-se num núcleo urbano alicerçado economicamente nessas rotas marítimas. Cetóbriga, por esta altura, era já reconhecida como importante núcleo populacional, visto ter tido direito a ter bispo.
Apesar do modelo económico no qual assentava a urbanidade ter colapsado, bem como as redes de autoridade que asseguravam o bom funcionamento do sistema, quer Tróia, quer Setúbal, aparentam ter mantido habitantes e alguma forma de vivência urbana, pois a reputação de núcleo urbano é mantida por mais uns séculos. Mas, com o estilhaçar do poder económico e administrativo, em simultâneo, dá-se um polvilhar habitacional, uma distribuição populacional extremamente dispersa, com vista à posse do pedaço de terra próprio, a assegurar o próprio sustento. Outro aspecto a ter em conta, nesta altura, é que Cetóbriga, com uma génese tão veloz, teve, e isso verifica-se nas poucas epígrafes encontradas, de importar população de outros lugares do Império. Muitos libertos, mas, inevitavelmente, muitos escravos também, pois os romanos eram uma civilização visceralmente esclavagista. Sem controlo administrativo-militar capaz de oprimir, tal como já se constatou em muitos outros lugares, toda esta classe social fugiu para outros lugares, onde não os conhecessem como indivíduos sem liberdade.
Os grandes senhores da villae locais não parecem ter conseguido evitar esse desmembramento da coesão social, tal qual como os aristocratas urbanos de Salacia (que são provavelmente os mesmos senhores dessas villae).
A chegada do domínio muçulmano, a substituir o domínio visigótico não vem alterar grandemente a situação. O poder central estava distante, pouco preocupado com os confins periféricos ocidentais desse domínio. Mesmo assim, investe-se numa recuperação dos núcleos urbanos de Usbuna (Lisboa) e de al-Qasr (Alcácer do Sal), na sequência de ataques vikings no Sado, como o de 844. Abd al-Rahman II apercebe-se que não pode negligenciar a costa atlântica e, num programa de investimentos concertados com uma reactivação da administração (ou seja, de governantes e da fiscalidade que andavam ausentes da foz do Sado), faz sentir a presença desse novo domínio. Todavia, a recuperação está longe de ser total. Após a recuperação de alguma vitalidade, al-Qasr expande o seu domínio administrativo à foz do Sado e Península de Setúbal, com a construção de fortificações em Balmala (Palmela), Coina-a-Velha e Sesimbra. As situações de conflito constantes entre muçulmanos ibéricos, entre muçulmanos ibéricos e magrebinos, muçulmanos e cristãos, muçulmanos e vikings, não aconselhavam assentamentos humanos em zonas planas e abertas, mas sim em locais com alguma possibilidade de resistência. O que restava de Tróia e Setúbal é absorvido pelas contingências de al-Qasr, primeiro e Balmala, depois.
Após a integração da península de Setúbal em território português, a famosa reconquista, bem como do estabelecimento de segurança nas fronteiras a Sul, Setúbal vai começando a restabelecer contornos de urbanidade. De facto, agora, o centro administrativo estava em Palmela, com o senhor local muito próximo e atento, a Ordem religiosa-militar de Santiago e Espada. Todavia, numa altura de paz (se bem que relativa), um porto comercial tem mais importância que um povoado montanhoso. Setúbal, através da vinda de mercadores nacionais e estrangeiros, cresce depressa. Esse comércio, observável na importação precoce de cerâmicas importadas do Mediterrâneo e Norte da Europa, faz com que esses novos contingentes populacionais encetem um novo “combate” pela autonomização do povoado, tal como já se havia passado com Cetóbriga. Para tal aliam-se a uma instituição poderosa, que só tinha a lucrar também com essa autonomia, o monarca. Assim, Setúbal torna-se Concelho, com gestão própria, tendo domínio repartido sobre a sua própria fiscalidade com o rei português. A cidade cresce à volta das actividades mercantis, substituindo Alcácer do Sal como o grande porto de escoamento do cereal alentejano para a capital. Rapidamente se retoma, também, a exploração do sal. Na transição do Século XV para o Século XVI, inicia-se um novo ciclo de actividade económica única, que traz prosperidade a Setúbal até ao dealbar do Século XVIII, permitindo a monumentalização do povoado. Trata-se do que denominei, n’ A Terra de Sal, a “idade do ouro branco”, ou seja, a riqueza que advém da exploração salineira. Tal como já havia sucedido com os produtos transformados de peixe, na época imperial romana, a maioria das actividades económicas do povoado gravitam em torno, ou são subsidiárias dessa actividade principal. Uma vez mais, são os constantes fluxos migratórios, nacionais e internacionais, que alimentam o crescimento humano e económico sadino. A riqueza, uma vez mais, volta a estar reunida nas mãos de uma pequena elite.
O colapso do comércio do sal sadino veio paralisar a cidade numa altura muito complexa de um ponto de vista político, quer nacional, quer internacionalmente. Contudo, após essa “suspensão criogénica”, Setúbal mantém a sua pujança, substituindo os rendimentos do sal, propriedade da aristocracia e da Igreja, por fábricas de conserva de peixe, da burguesia liberal. De facto, mudou apenas o produto e a constituição da elite setubalense, mas não a dependência de apenas um actor económico, nem os laços de dependência da restante população face a essa reduzida elite. Assistimos à recepção de novos fluxos migratórios, quer do Norte de Portugal, quer do Sul. Setúbal continua a sua expansão urbana, desta feita com os primeiros bairros de lata, que remontam à segunda metade/finais do Século XIX. As tenções sociais, já antes existentes, tomam dimensões explosivas. É o início das lutas sociais sadinas, que começam na “Revolta dos Marnoteiros”, de 1851, seguida, pouco depois, pela “Revolta de Santa Susana” e “Revolta de Santa Catarina”, ambas de 1858. Desde então, não mais pararam, sendo o distrito mais reivindicativo do país.
Após a indústria conserveira, outros “monolitismos económicos” se lhe seguiram, como as grandes indústrias, tendo como casos mais emblemáticos a Renault e, hoje em dia, a Auto-Europa, mas acompanhados pela SetNave, a Portucel, a Secil, entre outros.
Os “monolitismos económicos” acarretam, conforme temos vindo a observar, vários problemas estruturais. O primeiro, evidentemente, é o sistema de dependências que criam ao seu redor, o segundo é que se criam dependências, estão, por sua vez, dependentes de outros, exteriores, para quem os dramas sociais sadinos nada dizem. Por último, o “monolitismo económico” tem sido o causador das condições de trabalho precárias da população que aqui têm vivido, ao longo dos dois últimos milénios.
Todavia, o modelo de crescimento económico no qual Setúbal tem insistido, fez com a cidade tenha sido sempre, à excepção de um período lato de falta de iniciativa económica, que corresponde a parte da Idade Média, um local procurado e atractivo para as pessoas. Aliás, o que é interessante, enriquecedor até, é que o sadino é o resultado da miscigenação de populações provenientes de todos os locais de Portugal, bem como com muitos locais do mundo, desde os povos orientais, na Idade do Ferro, às várias nações que constituíam o Império Romano, passando pelos magrebinos, durante o período de domínio muçulmano e com a Idade Moderna, aos negros, aos ciganos, aos holandeses, aos ingleses, aos dinamarqueses, aos espanhóis, aos italianos, entre muitos outros, que integraram o heterogéneo tecido bio-social da “idade do ouro branco”, tecido social esse que ainda agora se encontra em constante renovação, introduzindo mais e mais diversidade na textura da sua própria composição.

3. – Instrumentos da memória
3.1 – Instituições da memória
Em 1721 é criada a Academia Problemática e Obscura de Setúbal. A primeira sessão, a 30 de Maio, coloca o problema “Qual fizera mais, se Alexandre em conquistar o mundo, se Diógenes em desprezá-lo?”, tendo dois antagonistas. Estava assim criada a primeira instituição formal de Cultura, em Setúbal. Com ela, advém também um volume de produção artística e cultural impensável sem esse associativismo. As preocupações sobre a identidade estão implícitas desde o início, visto que os seus membros ou são naturais de Setúbal, ou vivem nela e as reuniões são, igualmente, apenas nesta cidade. Ao contrário do que se tem pensado, esta academia não foi efémera, teve uma previvência até bastante longa, estando ainda activa nos anos 60 de setecentos, mas isso é outro assunto, que ainda se encontra em investigação.
Todavia, deixando de parte as instituições do Antigo Regime, encontramos, logo no princípio do mundo contemporâneo sadino, os herdeiros dessa academia, a Sociedade Arqueológica Lusitana, assente em novos moldes, mais burgueses. Com isto queremos dizer que, apesar de também congregar os filhos das boas famílias locais, tal e qual a academia sadina, imbuída do espírito burguês, procurou, não a especulação teórica, mas sim o pragmático fazer.
As suas actividades são de efémera duração, balizadas entre 1850 e 1857, mas, deixaram uma memória bem documentada das suas acções. Não deixa de ser curioso que esses sete anos tenham deixado mais marcas que as dezenas da academia. Tal fenómeno só é possível porque a academia não procurava a perpetuação da sua instituição, ao passo que a Sociedade, procurava-o, não por si própria, mas para manter o conhecimento que através dela era gerado, o que é demonstrativo da profunda consciência que tinha da importância do seu tema de estudo e da utilidade social que a ele estava associada. A sua acção, o fazer, consistiu na realização de uma série de escavações arqueológicas no sítio romano de Tróia, que realizavam ano após ano. Dessas intervenções faziam notícias de jornal e publicavam meticulosamente os seus resultados numas revistas denominadas “Anais da Sociedade Arqueológica Lusitana”. Os materiais aí recolhidos estavam nas casas dos associados, mas, por não haver vontade das instituições poderosas de Setúbal em constituir um museu, em 1867 os associados votaram a ida desses materiais, alguns deles autênticos tesouros, em depósito, para a Academia de Belas Artes, de Lisboa, de modo a ficarem protegidas até à criação de uma instituição museológica local.
Com os estudos arqueológicos profícuos e importantes de António Inácio Marques da Costa e Arronches Junqueiro, bem como dos espólios delas provenientes, a arqueologia assumia um papel liderante no arranque da consciência identitária sadina. Aliás, da colecção de Arronches Junqueiro temos uma reportagem do jornal sadino O Elmano, publicada a 1 de Maio de 1907, na primeira página, que nos permite ter uma visualização do que esta continha:
O Seculo de domingo publicava o seguinte artigo em que é justamente apreciado o nosso amigo e antigo collaborador sr. Arronches Junqueiro: Quando apreciavamos em 1896 o estro do poeta das Urzes, homonymo do auctor genial da Morte de D. João e da Patria, não imaginavamos que aquella alma vibratil encerrasse o espirito positivo de um naturalista, e muito menos que viriamos pessoalmente a conhecel-o, em hora tão momentosa como a do centenario de Bocage em 1905. (…) Não podia ficar no escuro o fundador de um dos raros muzeus de zoologia particular - se não o único - que temos em Portugal, muzeu a que melhor chamariamos biologico, porque de tudo ali encontramos reunido e ordenado, desde a embryologia e as collecções micrograpincas até a um sortido muzeu zoologico, completado por collecções ethnographicas, ethenologicas, rochas, um herbario, um gabinete e...uma sala de Pompeia!
(…) Ao pé da janella direita está a collecção ethnographica, e nas paredes pendem em attitudes naturaes peixes, aves, etc. ; ao pé da janela esquerda descança no chão a cabeça enorme d’ um hippopotamo. (…) Do gabinete ou laboratorio, passa-se para o famoso terraço, onde se estende á direita um trecho magico de Pompeia, desenhado e pintado pelo dono da casa. Ao canto direito de quem entra está o muzeu ethnologico, com materiaes de Troia, etc. a sala, d’ um vermelho carmezim, tem á roda, entre frisos amarellos, pinturas no estylo de Pompeia, destacadas do fundo da parede, recortada por retabulos pretos. E’ uma evocação feita sobre documentos de uma sala romana d’ então, uma verdadeira surpreza, com as suas figurinhas de carne rosada, os seus moveis e utensilios estranhos, o seu sabor antigo de uma civilisação requintada, que o fogo, o fumo, a lava, o tremor de terra e por fim o incendio fulminaram, como se todos os males se accumulassem para o castigo e a ruina de tanto luxo! Registraremos ainda para curiosidade de Jorge Collaço, uns bellos azulejos feitos por Arronches Junqueiro na casa de jantar, e um grande presepio com remate egypcio, que se alonga pela parede. Divulgando esta maravilha, julgamos prestar serviço á Sociedade dos Naturalistas, que tem n’este talento polyplastico um auxilliar de primeira ordem, e prestamos homenagem desinteressada a um bello cultor apaixonado da sciencia, á qual sacrifica os seus haveres e consagra todo o seu tempo.
No entanto, a arqueologia não era o único motor dessas preocupações. A entrada do Convento de Jesus para a posse da Santa Casa da Misericórdia provocou a reunião de duas das três mais importantes colecções artísticas e históricas existentes na cidade de Setúbal. Ao tesouro da Misericórdia, constituído por peças de ourivesaria e joalharia de grande qualidade, bem como de um vasto espólio artístico e um riquíssimo acervo documental e bibliográfico, veio juntar-se parte da colecção artística do Convento de Jesus, das freiras Clarissas, constituído por um belo retábulo de Jorge Afonso, pintor régio de D. Manuel e D. João III, bem como outras obras de grande qualidade, quer de pintura, quer de escultura, para além do edifício em si. O edifício entrou na posse da Santa Casa em 1881, tendo aquela instituição, pouco depois, começado a investir em conservação e restauro de partes ou peças do espaço conventual. Temos referência ao restauro de um púlpito do Convento de Jesus, em Brecha da Arrábida, que mereceu duas notícias no jornal, em 1897. O Provedor da Misericórdia, Januário da Silva, encontrou, na área da cerca do Convento, o dito púlpito pétreo abandonado entre as ervas. Contratou, para tal, António Eduardo d’ Oliveira, “habil canteiro”, restauro esse que foi muito apreciado. Colocou-se logo a questão de esta peça dar origem a um museu na Sala do Capítulo, com algumas peças pré-históricas dos Barris e Quinta do Anjo, alguma cerâmica romana e peças dispersas do próprio Convento (capitéis, fustes e azulejos), num expresso desejo de reunir aquilo que ainda não se perdeu, “sem renunciar a esperança de readquirir o que nos levaram”. Esta expressão, pouco simpática, era referente a José Leite de Vasconcelos, o primeiro director do Museu Nacional de Arqueologia, que havia ido à Academia de Belas Artes e associado a colecção depositada pela Sociedade Arqueológica Lusitana ao espólio do museu que dirigia. Em Junho desse mesmo ano, por iniciativa do já referido Provedor, procedeu-se ao restauro da cripta localizada sob o altar-mor da Igreja do dito convento.
No que respeita à autarquia, temos de informar que, a 2 de Outubro de 1897, cria um museu dentro da Biblioteca Municipal, a partir da doada colecção de numismática de Barbuda Cabral. A atitude é louvada junto da opinião pública, contudo, deixa o aviso para que esta iniciativa não se resuma a este núcleo. A 23 de Setembro de 1899, o museu passa para os Paços do Concelho, onde ocupa uma sala. A câmara inicia os seus esforços para recuperar o espólio da Sociedade Arqueológica Lusitana, mas entre 1899 e 1905 não obtém qualquer resultado. Por esta altura a pressão da opinião pública era enorme sobre a autarquia e, com a publicação da abertura do Museu de Alcácer do Sal, num espaço unicamente destinado a ser instituição museológica, a 18 de Janeiro de 1905, patrocinado por Leite de Vasconcelos e criado por Francisco Galamba e Joaquim Correia Baptista, o escândalo estala, pelo menos nalguns periódicos locais. Aliás, o facto da primeira campanha de conservação e restauro promovida pela autarquia, em 1904, no pelourinho, ter sido apelidada de um mero avivar das letras e instalação de um gradeamento de protecção no monumento, já deixava adivinhar animosidade. O porquê desta animosidade é bastante interessante, pois pode ser considerado, hoje, como a consequência de um “monumental erro político”, por parte dos dirigentes da autarquia. De facto, um movimento saído do Clube Setubalense, em 1901, vem a gerar uma comissão constituída por Ana de Castro Osório, Paulino de Oliveira, João Carlos Botelho Moniz, Manuel Maria Portela, Luís Teixeira de Macedo e Castro, António Carlos da Costa Botelho Moniz, António Inácio Marques da Costa, Francisco Paula Borba e Francisco Joaquim Aires de Soveral. Tratam-se, certamente, de nomes familiares, que mais não seja, porque dão o nome a vias públicas nesta cidade. Da sua apresentação à autarquia, citemos apenas um fragmento, mais que elucidativo:
Parece-nos, pois, Senhores que a criação de um museu que seja ensino do passado e incentivo para o futuro, é da mais urgente necessidade n’uma terra que deseja progredir, não somente pelo numero das suas fabricas e enriquecendo as suas industrias e o commercio, como educando os seus filhos e mostrando aos estranhos que a passo e passo se vae engrandecendo materialmente, vae educando a intelligencia, rasgando vasto campo para exercer as aptidões artísticas do povo, que as tem incontestáveis. Nas vossas mãos está hoje entregue a direcção do município, e por isso a vós nos dirigimos para que nos auxilies com o vosso concurso para a criação de um museu regional que nos antolha ser um dos melhoramentos inadiáveis n’uma cidade da importância da nossa. (O Sul: 01/12/1901,3)
Como seria de esperar, a falta de atendimento a este pedido, que não foi feito como uma solicitação, mas como uma exigência realmente imperiosa, gerou animosidade contra a autarquia, que levou tempo a ser sanada. De facto, só nos anos 30 do Século XX, com a doação de Arronches Junqueiro de parte da sua colecção à autarquia, a situação acalma. Todavia, a colecção de António Inácio Marques da Costa, mais fulgurante, foi, inteira, para o Museu Nacional de Arqueologia.
Em 1915 é criada a Sociedade de Defesa e Propaganda de Setúbal, que tinha como objectivo o desenvolvimento turístico e balnear da zona de Setúbal: O nosso fim é pura e simplesmente melhorar, engrandecer Setubal, fazendo derivar para aqui riquezas que d’ outro modo procurarão apenas as terras que sabem cuidar de si, e nenhuma ideia pré-concebida no referente a crenças ou a politica, dirige os nossos actos o que facilmente se deprehenderá do ecletismo da commissão. Defende-se que se devem explorar as riquezas da Arrábida, pululando de chalets a região entre S. Filipe e o Outão; propõe-se a instalação de um hotel no Forte de Albarquel; visitas e roteiros pelas zonas de quintas e laranjais, bem como a Palmela. Há, efectivamente, uma preocupação em explorar os recursos naturais da região aliados aos patrimoniais, naquilo que se pretendia uma zona vocacionada para o turismo de luxo, bem de época. Davam os exemplos da Linha de Cascais e Sintra, com bons resultados da exploração integrada de recursos, noção esta que deveria pautar a iniciativa em Setúbal, para não perturbar os equilíbrios preexistentes.
A Sociedade é formada numa reunião, a 21 de Outubro, no Teatro Avenida. É nomeada uma mesa directória, presidida por Paula Borba, secundada por António Inácio Marques da Costa e Manuel de Padilha. Paula Borba, médico, o homem mais famoso da cidade de Setúbal, pelo seu auxílio aos mais desfavorecidos, Marques da Costa e, por último, Manuel de Padilha, jornalista e director de O Elmano. Da reunião sai uma comissão organizadora da Sociedade em que vemos arqueólogos, jornalistas, empresários, advogados, médicos; desde descendentes dos membros fundadores da Sociedade Arqueológica Lusitana de 1850, até aos recém-chegados migrantes, que assumiram algum papel de destaque na sociedade setubalense. Da vida desta Sociedade, não temos mais notícias do que as ligadas à sua génese.
No Estado-Novo os aspectos relacionados com a memória funcionaram de um modo diferente. Desse período temos a criação da Comissão Municipal de Arte e Arqueologia, uma imposição feliz do governo central, que obrigava os municípios importantes a criarem uma comissão conjunta entre o município e personalidades locais independentes e de reconhecido mérito e saber. O município estaria em minoria e essa comissão tinha autoridade para travar empreendimentos que atentassem contra o património, bem como para fazer sugestões à edilidade sobre esta área. Pelos finais dos anos 30, inícios de 40, temos a primeira comissão. Todavia, esta só vem a ter dois períodos de algum brilhantismo e mediatismo. O primeiro foi na segunda metade dos anos 50, quando José Marques da Costa e João Botelho Moniz Borba dela fizeram parte, o que, em muito, justifica o acompanhamento das obras de saneamento, a publicação da postura municipal que proibia obras no Centro Histórico sem acompanhamento arqueológico, a publicação dos Novos elementos para a localização de Cetóbriga e a criação do Museu de Setúbal/Convento de Jesus, como culminar lógico de um trabalho notável desenvolvido pela Comissão. Um segundo fulgor corresponde aos anos de 1974-75, com Alberto de Sousa Pereira, Carlos Tavares da Silva, Joaquina Soares e Luís Mesquita, que implica a publicação de uma Postura municipal relativa à conservação e defesa de elementos ou conjuntos monumentais, arqueológicos, artísticos, históricos e paisagísticos, da qual só restam as plaquinhas identificativas na Gafaria, na Casa das Quatro Cabeças e na sede da Sociedade Arqueológica Lusitana e culminou com a criação do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, em Dezembro de 1974.
Do Museu de Setúbal/Convento de Jesus vem a nascer a LASA, Liga de Amigos de Setúbal e Azeitão, com vista a congregar a sociedade sadina em torno das questões do património.
Do MAEDS, ou pelo menos com o seu apoio, nasceu a versão moderna da Universidade Popular – Bento de Jesus Caraça, bem como o Centro de Estudos Bocageanos. Todas estas instituições estão hoje presentes na vida cultural de Setúbal. Outras, apesar de recentes, já não existem, como o Centro Cultural de Setúbal ou a SALPA (Associação para a salvaguarda do Património da Região de Setúbal).
De formação mais recente, 1986, é o Museu do Trabalho – Michel Giacometti. A sua vocação prende-se com o mundo do trabalho e o estudo, divulgação e preservação do património de arqueologia industrial. É iniciado com a colecção Giacometti, através de Ana Duarte, Isabel Victor e Fernando António Baptista Pereira, à altura matriz da equipa do Museu de Setúbal/Convento de Jesus, e refere-se ao mundo agrícola português, associado à realidade da então decadente indústria conserveira sadina. O edifício é, aliás, uma antiga fábrica de conservas. Só mais tarde se veio associar o mundo terciário, com a Mercearia Liberdade. Ao Museu de Setúbal/Convento de Jesus estão ainda associadas a Casa do Corpo Santo, a Casa de Bocage e o Museu Sebastião da Gama, este último em Azeitão.
Um outro tipo de instituição da memória, deriva do Estado central. Trata-se, como é evidente, do Arquivo Distrital de Setúbal. Até há pouco tempo instalado numa moradia no Bairro Salgado, na qual as condições eram dantescas, tem, hoje, um edifício novo, uma espécie de “mini-Torre do Tombo”, nas Manteigadas. A sua função consiste em recolher, proteger e facultar o uso de documentação histórica sobre o Distrito de Setúbal. Encontra-se em Setúbal, como é evidente, porque se trata da capital de Distrito e é frequentada, eminentemente, por especialistas. Cumpre uma outra função, que não é identitária, apenas memorialista. Por essa razão não desenvolveremos o assunto, mas seria, caso o não referisse, uma omissão grave.
Penso que, com este breve périplo sobre as instituições da memória, podemos concluir que só temos, actualmente, dois tipos. O primeiro, de longa tradição, corresponde ao associativismo em torno da cultura, arte e património. De facto, quer aceitemos a Academia Problemática como instituição primeira, quer apostemos antes na Sociedade Arqueológica Lusitana, já se conta aos centos, os anos desta longa tradição. O associativismo cultural tem-se mostrado como essencial para o desenvolvimento de uma sensibilidade patrimonial na sociedade sadina, bem como catalizador da congregação de esforços individuais, com vista à persecução de grandes objectivos locais. Um exemplo bem recente é o da LASA em relação à salvaguarda e recuperação do Convento de Jesus.
O segundo tipo de instituição, é a instituição museológica. Das várias experiências de museus que Setúbal tentou e que se pautaram pela efemeridade optei por não falar, porquanto todas elas têm algo em comum, ou seja, não estavam associadas ao Estado, seja local ou regional. A não particularmente entusiasmante colecção numismática de Barbuda Cabral, em 1897, dá início a um longo e duro processo reivindicativo de criação de museus em Setúbal, bem na tradição identitária sadina. Artistas, intelectuais, personalidades ilustres, viram-se obrigadas a vestir, literalmente, o “fato de macaco” para arrancarem, ao município, a obtenção desses bens essenciais à comunidade como um todo.
Quer um, quer outro modelo, em certa medida indissociáveis, têm pugnado pela defesa da identidade e memória sadinas, umas vezes com vitórias, outras com derrotas. Tal, cremos, deve-nos levar a uma profunda reflexão.

3.2 – Operários do Património
Pretende, este ponto, complementar o anterior e fornecer, de igual modo, alguma matéria de reflexão. A situação presente não nos permite oferecer soluções certas, ou uma narrativa linear. Não existe nenhuma fórmula secreta que, através dos acontecimentos do passado, conjugados com as situações presentes, nos indique uma lógica de actuação, inquestionável e insofismável, no que concerne ao futuro.
Todavia, é nossa intenção confrontar situações, a passada e a presente, de forma a procurar oferecer uma perspectiva interpretável sobre a “fábrica do património” sadino. Como penso que tem vindo a ser claro até este ponto do texto, as actividades e as produções memorialistas sadinas, em muito dependeram das individualidades que as promoveram. Os seus protagonistas podem ser evocados nominalmente e correspondem, frequentemente, a cidadãos exemplares, que através da construção de um discurso identitário, concertado ou individual, seja histórico, seja arqueológico, contribuíram para que Setúbal tomasse consciência de si. Muitos desses protagonistas eram naturais da terra, outros imigrantes, que, nos seus tempos livres, se dedicaram a uma causa social que consideraram importante. Vários nomes foram enunciados, outros tantos o poderiam ser também. Não bastava alimentar as bocas, era necessário alimentar o espírito. Todavia, não tentamos realizar a história da história sadina, mas sim explorar a identidade subjacente.
Esses contributos, fruto de um romantismo admirável, como também já temos verificado, foram, por vezes, muito mal entendidos, quando não absolutamente condenados. Apelidados de pretenderem protagonismo, de serem vaidosos, macilentos, coitados, não obtiveram o reconhecimento da nobreza da sua causa senão após a morte, tendo sido homenageados, praticamente sem excepção, emprestando o seu nome a vias públicas.
O fascínio que todo esse modelo exerce sobre os nossos espíritos contemporâneos é evidente. Para tal basta recordar as palavras introdutórias de um vereador da cultura sadina, a propósito de uma pequena exposição sobre este tema:
“Das Antigualhas ao Património” é uma invocação de memórias individuais, mas são essas memórias a argamassa da nossa identidade colectiva. A imagem que temos do nosso passado, a nossa percepção de “nós”, foi construída pelos Homens que são aqui recordados. Cientistas, sábios, mas também escavadores da utopia, visaram conquistar a coesão e a razão de um mundo mais justo e equitativo, mergulhando com a mente e o corpo em busca desse porquê arquétipo. O respeito e a veneração que votaram aos antepassados, muitas das vezes em prejuízo da sua vida pessoal, não pode ser senão contada e recontada, a modo de mito da Idade perdida dos Heróis – Péricles e Ajáxes modernos, que afirmam não poder existir futuro sem uma compreensão e harmonização total com o passado. (Meira:2002, 1)
Actualmente, o modelo dos “escavadores da memória” é muito diferente. Porém, convém reflectir sobre os conflitos que existiram entre Setúbal e Lisboa. Cremos que os conflitos latentes entre, primeiro, a autarquia (pressionada pela opinião pública) e Leite de Vasconcelos e, posteriormente, entre José Marques da Costa e Fernando Bandeira Ferreira, nos quais Setúbal ficou sempre a perder, mais do que resultarem de um conflito entre localismo e centralismo, resultam, acima de tudo, de dois distintos modelos de “fazer” memória que entram em conflito.
Quer na primeira, quer na segunda situação, o confronto baseava-se numa diferente perspectiva de observar o património. Pelo lado de Setúbal estavam instituições e indivíduos, que, subsidiariamente, realizavam trabalho sobre memória. No lado de Lisboa, estavam indivíduos que eram “fazedores de identidade” a full-time, que o faziam como prática profissional, pela qual auferiam salário do Estado. Tratavam-se de especialistas. O conflito ainda hoje se verifica, um pouco por todo o país, havendo muito poucos exemplos de bom senso que possam ser invocados.
O novo modelo, assente no trabalho de especialistas, já não é o do relembrar as chávenas das nossas avós, a que é que sabia a manteiga no antigamente, em museus “etnográficos” da memória de uma concreta geração, à mercê de gostos pessoalistas, mas sim o de conhecer, com a máxima profundidade possível, o que as várias ciências que se debruçam sobre o que nos antecedeu, nos podem oferecer, numa perspectiva que ultrapassa a memória individual de cada um, mas abarca o todo de toda uma comunidade. O objecto vale por si, mas, num muito para além disso, vale pelo que representa. Eis o resultado da profissionalização dos “operários da memória”.
A profissionalização das áreas da história, em Setúbal, é recente. Tem início somente no Pós-25 de Abril de 1974. Os “operários da memória” sadinos são, actualmente, pouco numerosos, sofrendo de gritantes carências de meios de trabalho, conseguindo, somente, assegurar serviços mínimos. Porém, isso é outra questão que trataremos mais adiante, por ora, convém expor, para além daquilo que divide os dois modelos, que já é óbvio, o que os une.
No presente é insustentável manter estudos sobre o passado nos moldes casuísticos, como se desenvolveram antes. Na realidade, a massa de informação produzida é gigantesca e o avanço técnico das várias áreas, resultado de aperfeiçoamentos e acumulação de conhecimentos, faz com que cada técnico tenha de deter saberes de domínios especializados. Para realizar uma escavação já não basta levar uma picareta, para estudar uma obra de arte já não basta ter sensibilidade, para compreender um monumento não chega saber a evolução dos estilos pró-forma da História de Arte, tal como para fazer história não basta conseguir ler frases soltas de um documento paleográfico. Um museu está longe de ser um armazém, é preciso fazer mais que o coleccionista.
Creio que até aqui é aceite a perspectiva que estou a defender. Contudo, os “operários do património” não devem, pelas razões apontadas, deter o monopólio da memória e da leitura da identidade de um lugar. Essa atitude, que revela pouco sentido crítico face aos instrumentos técnico-científicos que mais ou menos domina, revela também uma crença absolutamente doentia sobre o conhecimento que vai produzindo, logo, demonstrando uma postura mais próxima do fanatismo religioso do que a do cientista social que, por natureza intrínseca, é relativista. O monopólio da memória e da identidade, aliás, não deve ser desejado, pois a memória, bem como mais ainda a identidade, possuem uma substância tão volúvel, que aconselham outro tipo de abordagem.
A discussão, a polémica, a partilha, a criação e recriação infinita de versões e leituras, são geradoras de movimento, estando mais de acordo com a natureza destes dois conceitos. Ora, para que o operário da memória não imite o “sermão de Santo António aos peixes”, como é tão frequente acontecer, tem de injectar utilidade social ao seu trabalho. Quanto ao que respeita aos legítimos herdeiros da tradição dos heróis identitários românticos, que, felizmente, ainda existem nesta cidade, também têm de fazer readaptações à modernidade. Estes encontram-se, principalmente, nos movimentos associativos, os quais têm de ser revitalizados de modo a atingir a população, de forma eficaz, como antes já o foram. Todavia, os modelos de sociabilidade urbana são muito diferentes dos da super-nova associativista de há cem anos, pelo que as metodologias a usar não podem, nem devem, continuar a ser as mesmas.
Aliás, o que tem estruturado este discurso é, precisamente, a procura da maior eficácia das acções a realizar, pois é este o factor de união entre os dois modelos. Há, nos dois, preocupações similares, valorização de aspectos comuns, bem como a promoção e divulgação cultural como realização última da vocação que ambos apresentam. Mostra-se, consequentemente, como uma irracionalidade, a dispersão de meios, atendendo a que estes já são tão pouco significativos.
Outro tema que gostaria de expor neste sub-capítulo, é, do meu ponto de vista, de inquestionável importância. Existam muitos ou poucos operários da memória, muitos ou poucos heróis identitários românticos, na realidade de pouco interessam se não pensarmos na matéria-prima de que se faz a memória e, subsequentemente, a identidade.
Essa matéria-prima é o património e, infelizmente, esse vai rareando. Com o incêndio que ocorreu nos Paços do Concelho, em 1910, o arquivo municipal perdeu-se. Esse arquivo era de primordial importância para se poder, através dele, reconstituir a memória passada. Restam registos eclesiásticos, que nos falam de baptismos, casamentos e funerais e umas cópias dos notários, sobre transacções económicas, que hoje estão à guarda do Arquivo Distrital de Setúbal. Por esta razão, os arquivos da Santa Casa da Misericórdia de Setúbal são tão importantes, pois, a seguir à autarquia, era a mais relevante instituição sadina durante o Antigo Regime. Esse arquivo foi transferido do Museu de Setúbal/Convento de Jesus para o Arquivo Distrital de Setúbal recentemente. Outros arquivos, menores, existem em várias instituições que, quando conjugados com os de Lisboa, Leiria e outros sítios, nos permitem ainda, e não com pouco esforço, espremer alguns bons resultados. Porém, note-se, a perda do arquivo municipal em 1910 é irreparável, há uma imensidão de memórias que nunca mais poderão ser resgatadas.
Outro fundo patrimonial de crucial importância é o Centro Histórico. Já que os papéis não existem, temos de colocar as edificações a falar. Todavia, também isto se demonstra bastante difícil, porque para os seus ocupantes, é um centro histórico que não é vivido, nem sentido, como tal. As obras de remodelação, reconstrução, modificação são constantes, muitas delas não autorizadas, poucas delas acompanhadas pelos operários da memória, que se sentem incapazes de evitar esse outro incêndio, que ataca em lume brando, caso a caso, prédio a prédio, tão grave como foi o de 1910. É evidente que não se pretende um Centro Histórico em suspensão criogénica, como se de um museu oitocentista se tratasse. Porém, o incumprimento generalizado da intervenção patrimonial prévia é um atentado em relação à memória sadina que ainda muito poucos têm consciência. O facto da legislação portuguesa em vigor ser altamente restritiva e punitiva, não impede que isto aconteça, até porque se sobrecarrega os cidadãos com os encargos destas intervenções, que não se saldam por ser gratuitas. Muitos proprietários, sem liquidez financeira corrente (o que é comum em épocas de crise, como esta, e que tem de ser compreendido pelo Estado), endividados junto à banca, não dispõem nem de verbas, nem de tempo, para as poderem fazer. Alguns têm o azar de ser embargados, outros têm sorte e ninguém viu, mas, seja como for, neste momento, com este modelo de gestão, todos perdem.
O mesmo se poderá dizer em relação à arqueologia clássica, a de intervenção no subsolo. Como parece ser evidente, para estudar a génese de Setúbal, não só as fontes escritas são tão pouco frequentes que se podem enumerar numa só página, como o facto de a própria cidade apresentar níveis úteis de ocupação do solo muito altos, no Centro Histórico, em nada facilita esta investigação. Assim, convencionou-se primeiro, tendo sido legislado depois, que as obras que implicassem remoções no subsolo nessa área, seriam precedidas de uma intervenção arqueológica. Ora, tal como explicámos antes, essa legislação assemelha-se, na prática, a uma “sugestão”. Não é caso único, é significativamente mais transversal, facto que levou o Presidente da República, Jorge Sampaio, a dizer publicamente “A legislação não é uma sugestão!”, o que revela que o nosso Estado é, de facto, um Estado de Direito Teórico. Na realidade, cada obra que dispensa o cumprimento da lei, é um atentado às já frágeis hipóteses de avançar e resolver os problemas que foram tratados no capítulo 2. Os poucos operários do património existentes, têm-se concentrado no Centro Histórico de Setúbal o que, como é evidente, deixa todo o resto do território destapado. A situação é alarmante, mas terá de passar por uma resposta assumida socialmente, através dos operários do património em conjugação de esforços com os heróis identitários românticos, de modo a que os representantes políticos da autarquia, assumam a resolução efectiva desta triste e contínua profanação da identidade sadina. Está a ser constituída um Grupo de Trabalho para a criação do Parque Arqueológico da Arrábida – Tróia, procurando, a nível regional, a resposta a um problema insolúvel, até agora, num âmbito estritamente local. Esperemos, pois, para ver.

3.3 – Identidade e Vanguarda
Muitas são, até este momento, as questões que temos vindo a colocar relativamente aos métodos operacionais de construir o discurso sobre o passado. Temos tratado, especialmente, das versões institucionais e oficiais, de âmbito local. Também me parece evidente que este discurso só ficaria completo com uma análise das instituições nacionais, mas tal levaria a uma dispersão longa em relação ao tema que optámos por dissertar e, conforme enunciámos anteriormente, pretendemos valorizar a capacidade de síntese.
Muitos são os factores que têm alterado as relações tradicionais entre a autoridade efectiva, neste caso a concelhia e o poder simbólico, no qual se incluem os fabricadores da memória identitária. Actualmente, a autoridade das instituições de poder efectivo encontra-se numa crise de credibilidade, fruto dos novos modelos de sociabilidade europeia e ocidental. O individualismo, a competitividade, a ambição são valores cultuados pela contemporaneidade. Nesse sentido, a apropriação da identidade também diverge, privilegiando discursos alternativos ao invés de uma única versão oficial. Se cumpre ao Estado salvaguardar o património, as memórias já se pretendem diversificadas e, no que respeita à identidade, tal como no que concerne actualmente às formas de sociabilidade da religião, cada um tem a sua visão e escolha pessoal. O espartilhar dos campos tradicionais do património, bem como dos temas de produção histórica, reflecte essa procura da satisfação individual.
Os associativismos culturais vivem esta realidade diariamente, pois nunca, como hoje, se debateram com tantos problemas de congregação de individualidades em prol de um projecto comum de interesse social. Os museus viram-se na contingência de se exporem radicalmente ao exterior, para não ficarem com um espaço vazio, a ouvirem apenas os passos do silêncio nas salas expositivas. Como disse antes, novas soluções têm de ser procuradas. Há que procurar outros agentes culturais a serem convidados a assumirem uma nova preponderância, um novo papel, no desenvolvimento da cidade de Setúbal.
O primeiro e principal novo actor desta transformação na dinâmica urbana terá de vir a ser o ensino superior. Nele se congrega demasiada massa-cinzenta para poder ser desperdiçada. As instituições de ensino superior de Setúbal são recentes, mas não tão recentes que se justifique o alheamento em relação à vida social e cultural da cidade. Na realidade, têm desenvolvido projectos culturais, mas apartados dos outros promotores culturais, como se estivessem num mundo paralelo. O esforço de aproximação entre as instituições de ensino superior locais, com as instituições museológicas da cidade (que têm fortes ligações às universidades de Lisboa, herança muito viva do modelo criado no início do Século XX), bem como com as instituições associativas culturais, não é aconselhável, é urgente.
O facto de existir uma licenciatura em Arquitectura, na Universidade Moderna e de, este ano, se ter iniciado uma licenciatura em Património na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, não permite que essa aproximação seja adiada por mais tempo. A aproximação entre o ensino, com toda a sua capacidade criativa, proveniente da irreverência intelectual juvenil, aliada ao savoir-faire de quem está no terreno, de diversas maneiras, poderá oferecer coisas novas, coisas muito interessantes. É, pelo menos, a nossa opinião.
Um outro aspecto que terá de vir a ser ponderado, ou pelo menos julgo que terá de ser reflectido, é a falta de capacidade de produção efectiva de bens de consumo cultural memorialista. Os museus promovem, além das suas exposições permanentes, diversas exposições temporárias, quer de temas patrimoniais, quer de promoção artística contemporânea. Esta acção é complementada com as várias pequenas galerias que Setúbal tem, o que é um aspecto extremamente positivo, pois seria danoso que existisse alguma forma de monopólio da divulgação artística em Setúbal. Paralelamente às exposições existem, pelo menos nos museus, a produção de catálogos, o que, também me parece de louvar.
A produção de bens culturais memorialistas está, todavia, excessivamente concentrada na autarquia, que corresponde, na prática, ao grande produtor e editor de Setúbal. No entanto, esse protagonismo assegurado pelo município é prejudicial, pois veicula apenas versões oficiais, “autorizadas”; a memória que o poder instituído pretende divulgar, o que, por outras palavras, significa, a versão da memória que serve os interesses do poder instituído.
Para melhor compreendermos o que agora defendo, e não correr o risco de ser mal interpretado, faremos uma pequena pausa no fio condutor deste texto, para explorar este assunto interessante. Diariamente somos informados de relações promíscuas entre o futebol e o poder, seja ele autárquico, seja ele governamental. Essas ligações “estranhas”, nada têm de estranho, na verdade. Tratando-se o futebol de um evento que congrega a comunidade, gerador de profundas paixões e detentor de um enorme poder simbólico identitário, é com naturalidade que o poder se interessa por assumir alguma forma de controlo sobre o fenómeno sociológico que decorre, em paralelo, com o evento desportivo. É saudável que o poder se preocupe e se interesse pelo futebol, no sentido em que os seus cidadãos se interessam por futebol. As consequências e os resultados desse interesse natural do poder, é que encontram formas distintas de materialização. Muitas das vezes, a atitude condenatória dos mass media em relação a esse interesse, aponta para a instrumentalização que o poder faz do fenómeno futebolístico. Na realidade, não fosse esse interesse claramente manipulativo de alguns e, certamente, as críticas seriam outras, como a da falta de incentivo ao desporto.
As Comemorações Memorialistas Oficiais interessam ao poder, de tal forma que é ele que as promove. No caso sadino, temos as recentes comemorações de Luísa Todi e Bocage, que nos servem de exemplo prático dessa realidade. Tal como no que respeita ao evento desportivo, também em relação ao poder simbólico da memória e da identidade, o poder manifesta claras intenções. É saudável que o poder se preocupe e se interesse pela memória e pela identidade, no sentido em que os seus cidadãos possuem relações materiais e emocionais com o espaço onde nascem, vivem e morrem. Muitas das vezes, porém, o poder procura a instrumentalização do fenómeno memorialista. Essa manipulação da memória é possível, porque é o poder que detém os meios de promoção da comunicação histórica, ou seja, é a instituição que possui o dinheiro para a poder tornar pública. Detendo os meios de promoção, através da posse e administração dos museus locais, bem como da concentração da quase totalidade da capacidade editorial local, veicula a memória que serve melhor os seus objectivos.
Assim, e retornando às ideias que temos vindo a desenvolver, há uma necessidade, urgente, de retirar, ao estado local, o monopólio da divulgação da memória, para que se faça e desenvolva mais e melhor produção memorialista, seja ela de índole histórica, arqueológica ou artística. Cremos ser este o principal repto a lançar às associações culturais e identitárias sadinas - o de retirarem o monopólio da divulgação da identidade ao poder efectivo, pois este só promove o que favorece os seus objectivos naturais de perpetuação de uma situação que lhe é favorável. Com isto, não pretendemos acusar o poder autárquico, de uma manipulação consciente, com objectivos perversos, mas apenas chamar à atenção que, e como é evidente, o poder prossegue na concretização dos seus próprios objectivos.
Esta situação faz com que se crie um grupo diminuto de indivíduos que, no partido A, ou no partido B, venham, de acordo com os resultados de cada eleição, a concentrar as capacidades de publicitação memorialista que o município possui. É evidente que esta situação é variável, em intensidade, de acordo com a natureza dos indivíduos que estão no poder, a cada momento, mas são, de certo modo, situações habituais.
Se houver um espartilhar da capacidade de divulgação cultural memorialista, favorece-se a sua produção, na medida em que se cria espaço para haver outras leituras sobre o real, que não sejam filtradas previamente pelo poder. E quando falamos em capacidade de divulgação ou de edição, pensamos em sentido lato, não somente em livros. Na realidade, pensamos em outras e novas áreas que poderão constituir-se como modelares e que resultem da colaboração dos grandes protagonistas futuros da identidade urbana (associações, museus e universidades), como a produção de documentários, exposições, tertúlias, eventos de contacto entre o património e a arte, em novos diálogos contemporâneos.
Estes novos caminhos estão já a ser trilhados por free-lancers, se é assim que os poderemos apelidar. Tratam-se de indivíduos que não estão integrados nem nas instituições da memória, tão pouco são operários do património, nem pertencem a quadros políticos, pelo menos no activo, mas, é sobre eles, que recaem grandes expectativas. Tratam-se, geralmente, de alunos universitários, que, em final de curso, realizam um trabalho sobre a sua terra natal, onde procuram exercitar as suas potencialidades criativas, sem se encontrarem amarrados às contingências operativas dos operários do património.
Falaremos apenas de uma situação, paradigmática, porquanto representativa de tantas outras. Em Setembro de 2003, a Ordem dos Arquitectos e a União Internacional dos Arquitectos, em colaboração com o IPPAR, a Fundação da Juventude e algumas autarquias portuguesas, nas quais Setúbal estava englobada, lançaram um concurso internacional de ideias, denominado “Concurso Internacional – Celebração das Cidades”. Com esse concurso, pretendia-se que arquitectos e estudantes de arquitectura produzissem uma reflexão sobre uma das cinco cidades identificando problemas e propondo soluções que promovessem a qualidade de vida urbana, recuperando para a cidade a sua essência como um lugar de encontro, criatividade e solidariedade. Nas palavras do principal mentor do concurso, Jaime Lerner – Presidente da UIA, pretendia-se linhas de actuação “simples, de efeito imediato, aplicáveis a qualquer situação a custos razoáveis; para facilitar o quotidiano dos cidadãos e atender a necessidades urgentes, quer no coração das cidades quer em áreas mais remotas, onde as pessoas vivem em condições mais precárias”. A estas operações chamava Lerner acupunturas urbanas. (SARAIVA, 2004)
Nesse concurso foi premiada uma, então, estudante de arquitectura, natural de Setúbal, Andreia A. Luís Teixeira. A proposta que apresentou nesse concurso internacional, acabou por ser desenvolvida na apresentação do trabalho final de curso que defendeu, intitulado Centro Histórico de Setúbal. Intervenções (Alter)nativas.
Nesse trabalho procura explorar a cidade, quer na sua profundidade histórica, quer nas vivências dos lugares, procurando encontrar elos identitários entre os vários espaços, de modo a compreender a sua fisionomia. Essa fisionomia, ou alma do lugar, veio a encontrar a sua expressão corpórea nos assadores de peixe que pululam toda a cidade. Fixando a atenção nesse objecto, pensou-o como um container de planta livre, neutro, com um forte suporte tecnológico e plurifuncional, de modo a dar resposta ao carácter sempre mutante e complexo que essa autêntica instituição contemporânea sadina tem, à contínua mudança de usos e estratégias, à afluência maciça de consumidores nos restaurantes. O assador, graças a este projecto, passou a caixa polifuncional, ecológica e electrónica. Não se trata, certamente, de um projecto minimalista, pois a forma final de cada um depende dos seus utilizadores, mas é um projecto conceptual, na linha vanguardista das posições de arquitectos como Norman Foster e Renzo Piano.
Esse trabalho, contudo, não se fixa apenas nos assadores de peixe, explora ainda muitos outros aspectos, novos trilhos a percorrer, fundindo património e modernidade.
Ideias novas, irreverentes, de custos controlados, autênticas “acupuncturas” na essência da cidade, no que ela foi, no que é e no que deverá vir a ser. Conforme disse, trata-se de apenas um exemplo, dentro dos muitos que, felizmente, vão aparecendo. É preciso, é necessário, estar atento ao potencial criativo desbravado por estes free-lancers talentosos, naturais de aqui, que devem ser acarinhados, integrados e estimulados a prosseguirem na recriação da tecedura urbana. O potencial criativo humano sempre se revelou a melhor aposta na resolução dos impasses civilizacionais.

3.4 – Símbolos
O poder simbólico assenta num conjunto de características subjectivas que, mais do que o permitirem definir, permitem reconhecer a sua existência. Assim, apesar de podermos explicar a génese de alguns poucos símbolos identitários de Setúbal, o que até tentaremos fazer, reconhecemos que, para além desse processo crítico, eles são, actualmente, uma realidade existente. Os símbolos de uma cidade são, simplesmente, “carnalizações” de aspectos desse lugar, existentes ou em forma de utopia.
Parece-nos ser do maior interesse começar pelos principais símbolos humanos sadinos, Bocage e Luísa Todi. Não nos parece necessário recordar a sua biografia, visto que em 2003 se celebrou o ano de Luísa Todi e em 2005, o de Bocage. De qualquer maneira, em Setúbal, essas biografias são, genericamente, conhecidas. As livrarias da cidade possuem vasta bibliografia, tal como as bibliotecas e os museus; as referências a estes “heróis” sadinos estão materializadas por toda a cidade, em pedra, nos nomes de escolas, de vias, de estabelecimentos comerciais … entranhados no tecido quotidiano da comunidade.
Todavia, Bocage e Luísa Todi são símbolos relativamente recentes, pois, não só viveram à relativamente pouco tempo, como a sua transformação em mitos urbanos é fruto de um trabalho ainda mais próximo. Na realidade, na segunda metade do Século XIX, com a instauração e consolidação de um novo sistema social, burguês e liberal, que vem substituir o Antigo Regime, é permitido o culto da personalidade em áreas onde tal não era habitual. Na realidade, o culto das personalidades do Antigo Regime valorizava os monarcas, os homens ligados aos feitos de armas e os de especial santidade. O novo sistema, capitalista, privilegiava as personalidades ligadas à criação e desenvolvimento, a maioria dos quais ligados à cultura. O exemplo mais visível deste fenómeno tardo-romântico, são as celebrações camonianas em Lisboa e um pouco por todo o mundo lusófono, de 1880. Procurava-se, através dos “génios”, felizes filhos pátrios, celebrar a nacionalidade. No âmbito local fez-se o mesmo, de modo a incentivar a celebração das identidades locais. É assim que ressurge Bocage, bem como a subscrição para a sua estátua. A Praça do Sapal, maior praça de Setúbal é rebaptizada com a sua evocação e a Rua da Praia, maior eixo viário da cidade, é convertida em Avenida Luísa Todi. Foram naturais de Setúbal, indivíduos viajados e celebrados nacionalmente, de reconhecido mérito cultural. Provêem da burguesia e não da aristocracia e atingiram a excepcionalidade. Encarnam o novo espírito que a elite intelectual setubalense pretende valorizar, o mérito e a excepcionalidade individual ao serviço da comunidade.
Ligado à criação destes dois símbolos está Manuel Maria Portela, um homem proveniente de uma família popular que, a pulso, se vem a afirmar como um importante historiador setubalense, abrindo o seu caminho até ao reconhecimento com diversos amargos de boca. Um deles, talvez a discriminação maior que sofreu, foi o ter de ceder as suas recolhas de informação a Alberto Pimentel, um famoso escritor radicado em Lisboa, contratado pelo município de Setúbal, para elaborar a História de Setúbal, atendendo a que Manuel Maria Portela era visto como um autor pouco credibilizante para esse trabalho que a edilidade decidiu patrocinar. De facto, Manuel Maria Portela, era mais reconhecido em Lisboa, pelas suas investigações e actividade jornalística, que na terra que adoptara como sua. Aliás, tal comportamento por parte da câmara parece ser uma constante, atendendo ao que se passou com a Sociedade Arqueológica Lusitana, com João Carlos de Almeida Carvalho, com Arronches Junqueiro, com Ana de Castro Osório, com José Marques da Costa, com Fernando Bandeira Ferreira, entre outros mais recentes. Infelizmente, isto ainda não mudou.
Outros símbolos humanos existem neste culto colectivo dos antepassados contemporâneo, um panteão vasto de carácter sagrado, mas não religioso. Para tal basta, por exemplo, observarmos o Tríptico de Luciano, pintura que encabeça o salão nobre dos Paços do Concelho (a sala mais importante da casa dos cidadãos de Setúbal), colocado, estrategicamente, como um altar numa igreja, presença permanente e imanente a qualquer importante acto oficial celebrado pelo município.
Paralelamente aos “heróis antepassados”, temos os “locais sagrados”, locais esses onde se vê e sente, de uma forma mais intensa, a pertença à comunidade. Em Setúbal esses locais estão sobremaneira identificados e, de tempos a tempos, retornam ao espectáculo do mediático local, maioritariamente pelas piores razões. De facto, quando esse local sagrado para a comunidade está conforme ao que se espera, cumpre a sua função. Quando um local sagrado para a comunidade não está disponível, logo não cumpre a sua função para com a comunidade, há uma perturbação do normal funcionamento urbano, quer na dimensão objectiva, porquanto há obstáculos físicos que impedem a sua utilização, como nas dimensões subjectivas de apropriação vivencial desse objecto sagrado, pois existem impedimentos à prossecução do destino do espaço, que é o ser de acordo com a sua natureza. O não estar de acordo com a sua natureza faz com que exista um sentimento de revolta contra aquilo que é sentido como uma profanação do espaço, o que se converte numa ofensa à comunidade.
Vários são os casos que poderíamos aqui referir, mas, e modo a não sermos maçadores num texto que já vai longo, centrar-me-ei no axis mundi da cidade, o Convento de Jesus.
O Convento de Jesus de Setúbal foi fundado em 1490, por iniciativa de Justa Rodrigues Pereira, ama de D. Manuel. Justa Rodrigues Pereira, dama da Corte apesar de um nascimento não particularmente notável, tinha uma influência grande, visto que, para além de ama do Duque de Beja, havia sido companheira de um filho ilegítimo de D. Afonso V, um frade carmelita, um dos homens mais inteligentes, mas, simultaneamente racional e frio, que o País conhecera, com quem tivera dois filhos. Trata-se de uma peça arquitectónica atribuída a Diogo Boitaca, ou Boutaca, mestre italiano ou francês, autor de outros projectos como a Igreja do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa. Justa Rodrigues Pereira, obteve, para tal ensejo, o apoio de D. João II e D. Leonor (esposa de D. João II e irmã de D. Manuel, à época Duque de Beja), conforme nos narra Rui de Pina, quando manifestou o seu desejo de que fosse dedicado ao nome de Jesus. O primeiro monarca, comovido e sensibilizado com esta pia devoção da pseudo-cunhada mandou, de imediato, chamar o arquitecto, que, maravilhado, confessou que havia traçado aquele edifício num sonho. Tal reforçava o carácter místico da fundação, não fosse o facto de sabermos que os construtores tardo-medievais transportavam consigo cadernos com projectos já elaborados, com vista a auxiliar a tarefa dos encomendantes.
Inicialmente concebido para receber treze irmãs clarissas, o projecto vem a sofrer alterações com a subida de D. Manuel ao trono português, que manda reformular a igreja, bem como a reestruturar as dimensões conventuais, passando então a ser equacionado para receber trinta e três freiras. No início pretendia-se seguir o número dos apóstolos com a madre superiora a fazer a vez de Jesus, ao passo que com a revisão do projecto procurou-se enfatizar o número de anos que Cristo viveu. Tal obrigou o arquitecto a realizar algumas modificações, pois D. Manuel desejava uma igreja de três naves e com cobertura de alvenaria, ao invés da nave única e tecto de madeira inicialmente dimensionados. Na procura de uma resposta face às exigências do novo patrocinador, criou-se a primeira igreja salão, que vem a ter a sua afirmação clara num novo vocabulário arquitectónico, o Manuelino, evidente na Igreja dos Jerónimos.
No cruzamento das tradições de gótico tardio mediterrânico com as tradições portuguesas, conjuntamente com a capacidade de improvisação devido à mudança de patrocinador, são experimentadas soluções novas, materializando, neste edifício, o ensaio do que se vai convencionar como o Manuelino. Daí ainda hoje se discutir afincadamente, entre os especialistas, a classificação deste conjunto arquitectónico único. A leitura das crónicas deste edifício, da autoria de Leonor de S. João (inícios do Século XVII) e Ana do Amor Divino (Século XVIII), não nos deixam qualquer dúvida acerca das cronologias e documentos nelas compulsados, atiçando esta interessante e rica controvérsia.
Tratou-se do segundo convento erigido em Setúbal, coincidindo com o início do que já denominámos a “idade do ouro branco”. Foi, também, o primeiro convento edificado junto da povoação. A fama que granjeou junto da população foi enorme. Tal deveu-se a diversas razões, como o facto de estarem próximas das pessoas, pelo alto estatuto social original das freiras, pela sua conduta de vida rigorosa, mas, principalmente, pelas diversas manifestações do maravilhoso e do sagrado que neste espaço ocorriam. De facto, as relíquias milagrosas do convento, eram poderosíssimos totens taumatúrgicos, através das quais se curavam vários fiéis. Foram relatados diversos casos de freiras que eram visitadas por espíritos e tinham contactos místicos intensos com o sagrado. Note-se, porém, que se tratavam de irmãs invulgarmente cultas e com interesses intelectuais diversificados, facto constatável na escrita culta, solta e feliz das crónicas.
Devido à extinção das ordens religiosas em Portugal, o Convento deixa de ter esta função em 1881, data em que vem a falecer a última freira que nele vivia. A Santa Casa da Misericórdia, que obtém o usufruto daquele edifício, aí instala um hospital que se encontrará em funcionamento até 1961, altura em que cessa funções devido ao facto de ter sido construído o actual Hospital de S. Bernardo.
Sobre o patrocínio de Moniz Borba, Provedor da Santa Casa, em colaboração com a autarquia, criou-se o Museu de Setúbal no Convento de Jesus. Conforme já dissemos antes, havia já muito tempo, mais concretamente cem anos, que o Convento de Jesus havia sido apontado para museu da cidade de Setúbal, pois tratava-se, na opinião da classe média setubalense, do melhor destino para salvaguardar o mais belo monumento de Setúbal, aliando-o a uma nova função também considerada como urgente. Parece-nos útil recordar a apresentação de Ana de Castro Osório ao município, em 1901:
…Se fossemos bastante ricos para edificarmos uma casa com todas as condições que a hygiene requer nas modernas habitações hospitalares, de construção ligeira, rez-do-chão, bem arejada e dividida propositada para o fim a que se destinava, não hesitaríamos um instante em propor á Santa Casa da Misericórdia a troca por essa jóia de inestimável preço que se chama Convento de Jesus. Ahi instalaríamos os museu que Setúbal requer, n’essa casa que já por si representa um momento único de grandeza na história artística do paiz, e que hoje, embora menos mal conservado, não é respeitado como devem ser os monumentos d’arte…(O SUL:01/12/1901, 3)
Todavia, em 1961, concorreram para tal museu as incorporações de várias colecções da Santa Casa e do Município, desde pintura a ourivesaria, escultura a mobiliário, desenhos a arqueologia. Em 1992, após dez anos profícuos, o Museu fecha as portas para reestruturação, reestruturação essa que ainda hoje encontra dificuldades em se iniciar. O edifício, pelas directrizes executórias de um primeiro projecto arquitectónico de recuperação, foi picado até à estrutura de base. Também se procedeu à reorganização do Largo de Jesus, fronteiro à Igreja. Todavia, desde então não se passou à recuperação efectiva, apesar da elaboração de um novo projecto, da autoria de João Luís Carrilho da Graça.
Este consagra a recuperação do Convento de uma forma ligeira e harmoniosa, minimizando a utilização de materiais modernos, com vista a não entrar em conflito com o equilíbrio do edifício. O rebaixamento do piso à sua cota primitiva e a correcta recuperação das estruturas que o compõem, manifesta uma correcta sensibilidade face à importância, mas simultânea fragilidade, da construção quatrocentista. Somente a parte expositiva ficará instalada no Convento, visto que os serviços técnicos e instalações associadas estarão num outro edifício, a Norte do Convento. O arranjo exterior será substituído por um parque que rodeará todo o conjunto, criando declives suaves até ao edifício, que se encontra a uma cota inferior em relação à actual da cidade de Setúbal. Trata-se de um projecto a meio caminho entre o museu que se desenvolve dentro de uma perspectiva funcionalista e expressionista. Um museu introspectivo, conforme convém, pois privilegia a actividade interior, mas, simultaneamente, abre-se delicadamente para o entorno, com uma atenção e harmonia que relembra a feliz solução de Álvaro Siza no Centro de Arte Contemporânea de Santiago de Compostela, apesar de, na execução prática, evocar o museu Gulbenkian. Contudo, o pressuposto teórico não deixa dúvidas. Valoriza-se o convento e as suas colecções como a essência real do projecto, oferecendo-lhe espaços novos à sua medida, respeitando as pré-existências. O novo edifício, com uma volumetria idêntica ao convento, apresenta, no lugar do claustro, um lago, que cumpre função semelhante ao claustro conventual, ou seja, um desenvolvimento funcional em torno de um espaço central sagrado, de pausa e recolhimento, conforme foi defendido por Le Corbusier. Este projecto, não só revela uma vasta sensibilidade e saber visual, que é comummente reconhecido ao autor, mas também assume uma forte componente ideológica, pois materializa, sem dúvida, a vocação social deste museu, que é a de ser o templo identitário de Setúbal.
Apesar das várias utilizações e múltiplos arranjos, felizmente registados desde o início, em documentos que cobrem perfeitamente o que se pode observar actualmente pelas mais avançadas técnicas arqueológicas e patrimoniais, nunca se chegou a transformar, senão pontualmente, a estrutura primitiva do edifício. A essa sensibilidade trans-secular se deve o facto de ainda hoje podermos deixar-nos maravilhar e encantar com um dos mais belos e personalizados monumentos jamais existentes em Portugal, precocemente classificado como Monumento Nacional. Contudo, mais importante que usufruir de uma classificação do estado central, é o facto de antes mesmo desse reconhecimento por parte do governo, já a cidade ter eleito o convento como o símbolo de Setúbal. Tal deveu-se, certamente, ao facto da fama do convento ser grande e constante, ao longo de todas as utilizações pelas quais passou, ao ponto de ser inimaginável a história de Setúbal, desde finais do Século XV, sem ele.

4. – Uma nova cultura identitária?
Referidos diversos aspectos e problemas, falta, no entanto, afrontar um outro. As relações entre a produção memorialista e os meios que possibilitam essa produção. Efectivamente, não existem trabalhos consistentes e contínuos, se não existirem verbas para que estes se façam. Neste campo, a maior responsabilidade recai, de uma forma natural, sobre a autarquia, porquanto a sua legitimação de poder assenta em dois pressupostos que lhe conferem a autoridade. Em primeiro lugar, uma autarquia representa mais do que uma simples área administrativa, pelo que é eleita por uma determinada população específica, neste caso a sadina, que partilha um determinado território histórico, que possui mitos e memórias históricas comuns, uma cultura pública de massas específica comum, bem como um sistema económico próprio. Ou seja, em primeiro lugar porque existe uma identidade local pré-existente que sustenta essa legitimidade. Em segundo lugar, porque os representes autárquicos são eleitos num sistema democrático representativo, tendo como função assegurar os interesses do colectivo sadino, realizando, em nome de todos os sadinos, aquilo que cada um, individualmente, não tem poder para realizar, como a gestão correcta do território, a salvaguarda dos interesses locais face a outros regionais e nacionais, proporcionar a defesa da sua identidade e promover uma melhor qualidade de vida aos cidadãos e seus filhos, futuros cidadãos.
O modelo económico no qual Setúbal se tem alicerçado, ou seja, o “monolitismo económico” encontra-se em desagregação. A indústria massificada, já não gera riqueza para a cidade, visto que, pela mecanização, esses grandes espaços já não produzem emprego significativo. As sedes dessas grandes empresas situam-se noutras cidades, onde cumprem com as suas obrigações fiscais, pelo que, nem isso favorece a autarquia. As construções novas já não representam nada de significativo, porquanto não se pode construir ad infinitum, ad nauseam. Pagou-se um preço muito caro para obter os impostos de uma urbanização feroz, pagou-se com a descaracterização de todo um território. Um novo modelo económico está, neste momento, a substituir o anterior. A riqueza está a ser criada pelos Serviços, Serviços esses geradores da maior parte do emprego actual. Contudo, com esta transformação, novos reptos são lançados aos gestores de Setúbal, como o da transformação da cidade num espaço modernamente atractivo.
Esse desafio não consiste numa revolução urbanística, tão pouco tecnológica, mas é o conjunto de todas essas e outras inovações ao serviço de uma verdadeira revolução, a cultural. A cultura é hoje, numa cidade, a linguagem de coesão do tecido social e o principal promotor do juízo crítico da sua população. Nisto difere radicalmente da propaganda, que valoriza o entretenimento puro, através do festim dos sentidos desprovido de substância. Uma visão da cultura, alicerçada na gestão programática e financeira autónoma, de modo a promover a independência qualitativa, criativa e política dos produtos culturais, é o que se pretende. Que essa nova cultura permita o acesso à totalidade da população, seja trans-classista e que tenha como pilar conceptual a sua utilidade pública. Favorecendo as produções artísticas e favorecendo, igualmente, as de fusão, estar-se-á a avançar, como nunca, para a constituição de uma nova identidade urbana, feita da cooperação das múltiplas comunidades, em diálogo, que permitirá construir uma outra Setúbal – sem isolamento, sem solidão, sem “guetos”, fazendo das fraquezas de um modelo económico moribundo, as forças do modelo urbano do amanhã. Uma cidade que aproveite o seu melhor capital, o humano.
Este não é um desafio da autarquia, apesar de também o ser, é o desafio de todas as instituições locais e de todos os indivíduos que têm esta terra, como a sua terra.
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[1] Veja-se, a título de exemplo, a peça de Eurípides, As bacantes, onde o autor, na caracterização de Tebas, coloca o túmulo da mãe de Dionísio no Paço Real, pelo que assume toda a naturalidade que a entrada do culto dionisíaco na Grécia seja feito por esta cidade. O mesmo se observa claramente no poema heróico A Ilíada, aquando da profanação do templo de Apolo por Aquiles, pré-anunciando a perdição da cidade de Tróia. O símbolo mítico-religioso assume-se como a materialização da identidade da comunidade, pelo que pode ser profanado ou glorificado.
[2] Na Bíblia, os patriarcas são descritos como vivendo muitos mais anos do que uma vida humana normal, ainda mais se nos reportarmos à Idade Média, com uma esperança média de vida bastante mais baixa do que aquela que temos actualmente. Tais episódios, como o de Abraão, com uma longevidade absolutamente invejável, também estão reunidos no Génesis, o primeiro livro da Bíblia.
[3] É a este episódio que se foi retirar o símbolo internacional da paz, a pomba branca.
[4] Ptolomeu, Marciano e o Itinerário de Antonino.
[5] Sobre o Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, criado em Dezembro de 1974, veja-se Joaquina Soares (2000), onde, num sintético, mas exaustivo estudo, apresenta as actividades realizadas pelo Museu e as suas várias fases de intervenções arqueológicas no Centro Histórico de Setúbal. É de referir que foi deste Museu que surgiu a proposta de classificação das Muralhas Medievais de Setúbal, com o objectivo de limitar a destruição irreflectida dos testemunhos arqueológicos existentes no subsolo urbano, nessa proposta, entre S. Sebastião e a Avenida 22 de Dezembro (E-W), a Avenida 5 de Outubro e a Avenida Luísa Todi (N-S).
[6] Carlos Tavares da Silva e Antónia Coelho-Soares (1980-81).
[7] A Travessa de Frei Gaspar, onde actualmente está instalada a Região de Turismo da Costa Azul, corresponde ao único museu de sítio arqueológico - uma fábrica de salga, actualmente acessível ao visitante da parte urbana de Setúbal. Sobre esta fábrica e sobre a ocupação romana de Setúbal veja-se Carlos Tavares da Silva (1990) e Joaquina Soares (2001).
[8] Carlos Tavares da Silva (1996).
[9] Antónia Coelho-Soares e Carlos Tavares da Silva (1979) e Françoise Mayet et allii (1996).
[10] Joaquina Soares, op. citus.
[11] Actualmente identificado com o rio Guadiana.
[12] Actualmente identificado com o Cabo de S. Vicente.
[13] Note-se que ainda actualmente a questão está longe de encontrar uma solução satisfatória. Amílcar Guerra (1993). Os Cinetes, ou Cónios, ocupavam genericamente o Centro e Sul do Ocidente Peninsular. Tratam-se, em princípio (que nestas coisas é sempre melhor mantê-lo), de um povo de língua Indo-europeia proveniente da região sul da Rússia. Os Cempsos, provenientes da Meseta Ibérica, migram em duas vagas, uma para a região dos vales inferiores do Tejo e Sado, outra para a região do Guadalquivir, mais propriamente para a zona de Huelva. Os Sefes provêm igualmente da Meseta Ibérica e instalam-se a Norte dos Cempsos e a Sul dos Oestrímnios, ou povos colectores de estanho no Nordeste peninsular.
[14] Existem diversos estudos sobre a navegação na antiguidade que tornam claro este assunto. Quanto à região de Setúbal, Jorge Alarcão defendeu, recentemente, que o “Templo de Neptuno” descoberto sob o Outão não era mais do que um farol de auxílio à navegação.
[15] No que respeita ao sistema medieval de navegação, tenho tido a oportunidade e o prazer de acompanhar e auxiliar Gustavo Portocarrero, ao longo dos últimos dois anos, nas suas prospecções pela Arrábida em busca destes locais, o que tem revelado resultados surpreendentes. Porém, deixarei para outra ocasião, bem como ao coordenador dessa investigação, a sua divulgação.