quarta-feira, novembro 08, 2006

O Cancioneiro do Sado/Jornal " Pedro Nunes": Uma poesia de Palma

Vale de Reis. A norte de Alcácer do Sal

A poesia é um mundo próprio, com as suas regras e os seus autores anónimos, perdidos no tempo, mas que perpectuaram as palavras numa memória de oralidade que sobreviveu até ser registada em suporte escrito.
Trata-se de um mundo rico de sentimentos que preveligia uma oralidade, com uma lógica diferente da escrita.Sendo oral predomina o som, um sentido musical que se insere num mundo social, rural ou urbano, de difícil quotidiano, que importa conhecer. Como norma, só sabemos responder às perguntas que somos capazes de responder e ver o que queremos ou sentimos necessidade de olhar.
Com a poesia popular poderá passar o mesmo. Não é fácil compreende-la, mas na perpectiva da minha formação, olho este património imaterial como um registo de um tempo que existiu, num quotidiano aparentemente próximo cronológicamente, que deixou escassas marcas documentais, mas que começa a ficar estranho em relação ao contexto social actual.
Aprendi a analizar a poesia como um manacial documental de uma determinada época. Comecei pela poesia muçulmana do al-Andalus.
Num poema de Muhammad ibn Wazir/Final do século XII, podemos sentir a descrição de uma luta contra cristãos, como uma alegoria de uma "dança", o que soa estranho numa sociedade islâmica tardia que dá mais valor ao homem sábio "ulema" do que aos "senhores da guerra".
Trata-se de um bom registo de como se fazia a luta nessa época, porque é rica em pormenores muito interessantes.
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Encontramo-nos. Cruzaram-se sabres,
Golpes sobre golpes em voltas de mó.
Espadas agudas jogavam em torno
De nossas gargantas e das dos contrários.
Enquanto uns na sela se mantinham
Outros havia rolando pelo chão.
Peito eu não vi sem seta cravada
Nem veia sem provar a cimitarra.
Sem descanso nós fomos combatendo
Refúgio buscando no elmo e na lança.
Ah, quanta bravura de ambos os lados!
Por fim carregámos, eles vacilaram,
E o que vacila, sem remédio, cai!
(retirado de Adalberto Alves (ed. )O meu coração é arabe. A poesia luso-árabe, 2ª ed., Lisboa, 1991, página 126.
Para aqueles que caiam em combate, é interessante na perpectiva islâmica saber o que acontecia. Transcrevemos um hadiz de Ibn Abi Zamanim, traduzido do árabe por Arcas Campoy. Trata-se de um texto muito poetico.
(A minha tradução da versão da autora citada. Original - Garcia Fitz. 2005. Las Navas de Tolosa. página 451)
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.... se abrirão as portas do Paraiso na linha do combate e na linha da oração e quando montarem os vossos cavalos e os alinhares frente ao vosso inimigo, as huríes (mulheres belas do paraiso) de negras pupilas vão se engalanar com seda verde e cinturões amarelos de pérolas e mostrarão os seus seios e o rosto e depois montarão um dos cavalos do Paraiso com patas de jacinto e virão por-se por detrás de vós e enquanto aguentarem elas os apoiarão e se forem derrubados, elas ajudarão no vosso sofrimento e dirão - Hoje acaba para ti o mundo e as penas, depois estarás junto ao senhor, o generoso e bebereis o vinho selado e escolhareis como vossa esposa uma de entre as huríes de negras pupilas.
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Era assim que os alcacerenses muçulmanos sentiam a guerra de fronteira com os cristãos e não tinham receio da morte em combate, porque sabiam que morrendo como mártires teriam direito a uma huríe/mulher de sonho, morena com as suas pupilas negras. Talvez assim se compreenda a manutenção desta base militar até 1217.
Depois tive acesso a uma poesia do ultimo governador islâmico de Alcácer - Abdallah ibn Wazir, que faz uma critica social e politica do seu tempo. Mas o que deixou admirado é num poema seu (ainda em árabe) onde o poeta falar da tristeza que sentiu quando o seu cão de caça morreu numa caçada nas florestas de Alcácer.
Em suma, a poesia é um documento de uma época, rico em informação historigráfica fundamental para compreender a alma de uma sociedade. Nela podemos beber o sentimento intimo de como se sentia em determinadas situações.
Por muito simples que pareça, a poesia popular anónima, é um documento histórico que poderemos analisar, pelo menos é assim que a vejo.
O campo, a paisagem é uma construção de séculos e cada topónimo revela uma necessidade de registo para memória futura, de um acontecimento ou acção que aconteceu. A poesia popular, que bebe a sua inspiração nesse cenário, pode tambem ser encarada nesta perpectiva se a sobermos ler. Ou seja é uma janela aberta para um determinado fragmento do passado.
Mas não podemos esquecer quem faz esta poesia. São homens e mulheres que num quotidiano difícil conseguem criar dentro de si, um espaço intimo, onde conseguem dar brilho e sentimento ao que lhe vai na alma, partilhando com a comunidade fragmentos desse mundo.
O poema escolhido, com mais de 90 anos de registo escrito, foi publicado no jornal Pedro Nunes, nº 230 de 25 de Dezembro de 1910.
É provável que tenha nascido nos campos de Palma em meados do século XIX...
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Tenho cinco amores
Contigo são seis,
Tenho quatro em Palma.
Dois em Valle de Reis.
Com tantos amores
Se expande minh´alma,
Dois em Valle dos reis
E mais quatro em Palma.

1 comentários:

Anónimo disse...

Certa poesia encerra dentro de si um som que faz sonhar...